Podia ter matado na hora. Podia ter só ferido de raspão. Podia não ter acertado em ninguém. O rojão que atingiu o cinegrafista Santiago Andrade, disparado por um manifestante mascarado no fim da tarde de quinta-feira durante protestos contra o aumento das passagens de ônibus no Rio, é talvez a mais perfeita metáfora desse movimento que começou forte em junho do ano passado e perdeu completamente o rumo, reduzido a um embate entre policiais e militantes com o roteiro previsível da pirotecnia coreografada.
Desde o início, a hostilização sistemática ao trabalho da imprensa já denunciava o caráter autoritário dos que lideravam as manifestações e tentavam criar zonas de exceção no espaço público, intimidando e agredindo quem ousasse desobedecer. Tal como milícias. Eram esses os arautos dos novos tempos?
Entretanto, não foram poucos os intelectuais que aplaudiram essas ações, em nome do combate às grandes corporações de comunicação. E se entusiasmaram com a emergência das “multidões” supostamente livres das amarras de partidos, entidades e organizações da mais variada espécie.
Nem se preocuparam em identificar as forças que poderiam estar instrumentalizando, sabe-se lá com que objetivos, uma juventude ansiosa por contestação, embora sem formação política, e por isso mesmo muito mais manipulável. O elogio à fluidez do mundo virtual facilitou essa ilusão de que é possível tapar as lacunas da formação com a multiplicação das conexões em rede, como se a velocidade compensasse a falta de substância.
Um e outro
Agora esses intelectuais precisam se explicar. Uns finalmente reconhecem que a tal “tática” Black Bloc é nefasta, autodestrutiva e desagregadora. Outros insistem em diluir a gravidade do ocorrido mencionando outras mortes ou lesões graves em ocasiões anteriores, provocadas pela polícia, e alertam para a possibilidade de que essa tragédia seja utilizada para desmobilizar novas manifestações. Outros, ainda, mantém a retórica de sempre de condenação da violência do Estado, permanente álibi para a prática das maiores barbaridades “em defesa do povo”.
“Melhoras aí, cara”, balbuciou o parceiro do rapaz que acendeu o explosivo, talvez atordoado com a própria inconsequência e perplexo ao constatar que, afinal, brincar com fogo é perigoso. Em mais de um sentido.
Foi um cinegrafista. Ele não estava com os equipamentos de segurança necessários para uma cobertura como aquela, o que responsabiliza a empresa para a qual trabalhava. Se usasse capacete, talvez tivesse escapado. É certo: jornalistas precisam estar protegidos para desempenhar sua função. Mas podia ter sido qualquer um, e pessoas comuns não andam por aí com armaduras.
Como disse alguém num comentário de Facebook: queriam um Edson Luís. Produziram um Santiago.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)