O Brasil já enterrou mais jornalistas que a Síria neste começo de ano. Hoje é o país mais perigoso para a profissão do continente, após superar o México. E o quinto mais mortífero do mundo, depois do assassinato de 11 jornalistas em 2012, cinco deles diretamente relacionados com o exercício da profissão. Os dados do último relatório da ONG francesa Repórteres Sem Fronteiras (RSF) evidenciam um Brasil do progresso que tem avançado pouco na defesa da liberdade e pluralidade da informação.
Enquanto os telejornais nacionais dedicam mais de 15 minutos à cobertura da morte do cinegrafista Santiago Andrade durante um protesto no Rio, o falecimento de mais dois repórteres nas últimas semanas é relegado a pequenas colunas dos jornais nacionais e à imprensa local.
Há uma semana, Pedro Palma, de 47 anos, dono e único repórter do jornal semanal Panorama Regional, foi morto com três tiros em Miguel Pereira, no interior de Rio de Janeiro. Ele denunciava casos de corrupção e a falta de repasse de dinheiro público, envolvendo principalmente o prefeito e a primeira-dama e secretária de Desenvolvimento Social, Kátia Kozlowski. No dia 12 de fevereiro dois indivíduos atiraram contra ele na porta de sua casa. A polícia descartou que se tratasse de um assalto.
José Lacerda da Silva, 50 anos, cinegrafista no canal regional TV Cabo Mossoró, do Rio Grande do Norte, também foi morto este mês. Os motivos que levaram ao seu assassinato no caminho para o supermercado ainda não foram confirmados e suspeita-se que não tenham relação com o exercício do jornalismo, mas continua sendo parte das estatísticas.
O mais recente relatório da RSF dedica um amplo espaço para analisar o perigo que enfrentam os jornalistas no Brasil. O informe menciona o “coronelismo” como o “verdadeiro gargalo no pluralismo e na independência da imprensa”. O jornalismo torna-se instrumento dos barões locais, à mercê dos ajustes de contas políticas e que em algumas ocasiões são mortais, disse a ONG.
No entanto, os últimos assassinatos no Rio e a violência nas manifestações contra os profissionais da informação (mais de cem jornalistas ficaram feridos desde junho de 2013) fizeram cambalear a tese defendida no relatório de RSF, focado na denúncia da extrema vulnerabilidade dos jornalistas do interior do país, no que diz respeito ao exercício da profissão nas grandes capitais. “Continuamos afirmando que é muito perigoso para os jornalistas que trabalham no interior, pelo coronelismo ou a corrupção, mas os acontecimentos recentes demonstram que não é certo que a capital é mais segura, vide assassinato do jornalista no Rio e a segurança dos jornalistas durante as manifestações, que é outro tipo de perigo que aumentou nas grandes cidades”, esclarece Camile Soulier, responsável da ONG nas Américas.
Lúcio Flávio Pinto, jornalista em Belém, no Pará, norte do país, sofre intimidações desde 1992, quando começou a publicar reportagens sobre a crise da imprensa, que no caso de Belém é dominada pelo conglomerado de comunicação da família Maiorana. “Tive 33 processos, sendo que 19 foram propostos pela família Maiorana. Eu já fui agredido três vezes e ameaçado de morte durante o governo de Jader Barbalho (1983-94)”, conta o jornalista. Pinto responde na Justiça por reportagens publicadas no Jornal Pessoal, um veículo quinzenal independente, sem publicidade que vende 2.000 exemplares a cinco reais cada. “É uma democracia rarefeita. O que salta aos olhos é que a justiça está saindo da imparcialidade para tomar partido contra a liberdade de imprensa. Antes, a ponderação era do interesse coletivo sobre o direito à privacidade, esse era o elemento para definir os conflitos”, se indigna Pinto, que conta com uma rede de leitores e amigos que o apoiam nesses litígios.
Mas, escrever para um dos grandes veículos do pais tampouco é garantia de segurança. O caso do repórter André Caramante, da Folha de S. Paulo, mostra que qualquer um é vulnerável. Após 15 anos cobrindo segurança pública em São Paulo, nos quais denunciou vários casos de corrupção e grupos de extermínio dentro da polícia, Caramante começou a receber ameaças mais graves após a publicação em julho de 2012 de uma matéria sobre o coronel Telhada, eleito vereador pelo PSDB em São Paulo, em outubro daquele ano. A denúncia o obrigou a sair do Brasil para proteger sua família. Em dezembro do ano passado, de volta ao país, mas afastado das suas responsabilidades anteriores no jornal, Caramante recebeu o prêmio de Direitos Humanos das mãos da presidente Dilma Rousseff. Hoje, porém, procura emprego porque a Folha o demitiu alegando corte de gastos.
Crimes sem culpados
A impunidade dos crimes, em um país onde 80% dos homicídios são arquivados sem culpados, depende da pressão social exercida pela própria imprensa. Quanto mais visibilidade, mais rápido os culpados são presos. Um exemplo é o de dois jovens responsáveis pela morte do cinegrafista Andrade,que foram presos em tempo recorde. A publicidade marcou também a resolução da morte do jornalista Tim Lopes, torturado e morto por narcotraficantes no Rio em 2002. Outros casos menos divulgados seguem outro ritmo. O assassino de Décio Sá, jornalista e blogueiro do jornal Estado do Maranhão, morto a tiros em um restaurante em 2012, acaba de ser condenado a 23 anos de cadeia. O caso de Luis Carlos Barbon, assassinado por policiais militares em Porto Ferreira, a 228 quilômetros de São Paulo em 2007, demorou ainda mais para ser resolvido. Cinco anos para condenar a 16 anos de prisão os três policiais acusados.
Apesar de a maioria dos responsáveis por assassinatos em casos mais recentes terem sido presos, o Comitee to Protect Journalist (CPJ) afirma em seu site que das 27 mortes de jornalistas –todos homens- registradas desde 1992 no Brasil, 73% delas ficou completamente impune.
Ao mesmo tempo, conforme a denúncia da RFS, as ordens de censura a mídias de comunicação e jornalistas saturam os tribunais, atendendo a petições de políticos que se aproveitam de una justiça complacente.
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Contagem de mortes
Algumas entidades acompanham em nível global os ataques a jornalistas, entre elas a IFEX, Intercâmbio Internacional de Liberdade de Expressão, o Comitê de Proteção ao Jornalista (CPJ) e a ONG Repórter Sem Fronteiras (RSF). Apesar de todas concordarem que apenas os jornalistas que foram assassinados em detrimento do exercício da profissão devem ser contabilizados, os números não são muito rigorosos. José Roberto de Toledo, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), conta que a apuração é feita, mas que nem sempre conseguem concluir se o homicídio foi provocado pelo trabalho da vítima. “Acompanhamos os casos, tentamos fazer uma investigação, falar com o delegado e fontes. Mas o país é violento, são 50.000 assassinatos por ano, é de se esperar, estatisticamente, que jornalistas estejam entre estes, mas você nunca tem certeza das circunstâncias”, explica Toledo.
No ano passado, enquanto o RSF considera que cinco profissionais morreram, a CPJ conta apenas três. Dois deles ocorreram na mesma cidade do Vale do Aço, em Ipatinga, no interior de Minas Gerais, em abril de 2013. Tratava-se de um repórter, Rodrigo Neto, e o fotógrafo Walgney Assis Carvalho, que estavam investigando chacinas de policiais. O juiz do caso recentemente negou um habeas corpus a um dos policiais envolvidos no assassinato da dupla. O terceiro foi em Jaguaribe, no Ceará. Mafaldo Bezerra Goes trabalhava na rádio FM Rio Jaguaribe e sua morte foi ‘encomendada’ pelo chefe de uma quadrilha que Goes denunciou em seu programa. “Quando fazemos um levantamento dos casos de homicídios vemos que existe uma constante: a polícia geralmente chega aos que fizeram o crime, mas não aos mandantes”, lamenta Toledo.
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María Martín e Beatriz Borges, do El País