Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A segunda morte dos poetas

Em um texto sobre os feitos de Ayrton Senna, escrevemos certa vez que ‘os famosos, quando morrem, parecem entrar numa segunda vida’. E acrescentávamos:




‘A segunda vida dos famosos é a sua reconstrução na memória, na lenda, que os sobreviventes lhes fazem. Apagamos mágoas, críticas azedas, pés de barro dos ídolos, e eles passam a reluzir sem nódoas ou manchas, quase. Apesar da ilusão, é uma atitude muito bonita, reconhecemos. Que beleza haveria em espancar um defunto? Que dignidade existe em acusar, destratar, quem não mais se defende?’.


Essa lembrança nos vem a partir do artigo publicado em 28 de julho no JC Online (www.jc.com.br) sob o título ‘Centro do Recife vai ganhar esculturas de poetas’. Mas nos vem com um sinal invertido, com absoluta perversão. E para maior infelicidade e felicidade dos poetas e observador, respectivamente, trata-se de matéria sobre uma homenagem prestada pela Prefeitura do Recife aos grandes poetas recifenses.


O mal dos poetas


O maior mal dos poetas românticos no Brasil sempre foi a tuberculose. Em vida, em suas primeiras vidas, queremos dizer. Por isto, não sem razão, a redatora do JC Online acrescenta estas informações ao perfil de um dos homenageados, a quem ela rebatiza de Manoel Bandeira, com O, no Manu, para maior glória: ‘A maioria dos seus poemas traz aspectos da sua biografia, como o fato de ter turbeculose’. Isto mesmo, ‘turbeculose’, que deve ter sido assim grafado para evitar o mal advindo de comer tubérculos, batata, mandioca, aipim, talvez, nessa ordem. E vejam que não precisamos tuberculizar o parágrafo, porque ele próprio já está com o vírus e o veneno inoculado. Leiam, se puderem leiam, porque o parágrafo citado é, na sua nascente e virgem inocência:




‘O poeta recifense Manoel Bandeira é considerado, ao lado de Drummond e João Cabral, um dos mais importantes escritores do Modernismo Brasileiro. A maioria dos seus poemas traz aspectos da sua biografia, como o fato de ter turbeculose. Fatos observados no cotidiano também foram retratados nos seus textos. O poema Evocação do Recife é considerado um canto de homenagem à capital pernambucana, ao resgatar a nostalgia do passado da cidade’.


Ao resgatar a nostalgia do passado, esqueçamos essa ordem da frase, e, supondo que houve isto, nostalgia, esqueçamos a nostalgia que resgata o passado. Porque sem nostalgia, mas como uma evocação, citamos, do mesmo cotidiano do texto:




‘Esculturas, poesias e personagens que exaltaram a cidade são o ponto de partida para o lançamento do Projeto Circuito de Poesia – Cantos do Recife…


O Projeto será viabilizado em duas etapas. Na primeira, serão confeccionadas cinco esculturas. Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Carlos Pena Filho, Clarice Lispector e Capiba deverão ser representados nesta fase. Os locais foram definidos de acordo com as características de cada personagem.’


Olvidemos, já na primeira frase, na abertura do texto, um tropeço que é maior que a pedra no caminho de qualquer poeta: ‘Esculturas… que exaltaram a cidade’, como uma Loba de Rômulo e Remo na entrada do Recife. Retiremos da evocação os Manoéis, porque nem por erro, por ato falho, numa ignorância que houvesse dado certo, num desses felizes acasos da natureza da inocência, uma só vez sequer Manoel Bandeira aparece como o seu Manuel. Esqueçamos ainda as esculturas que se confeccionam, porque confeccionar não é só para remédios, bolos, panos, ainda que para tecidos o verbo nos viesse com um som mais próprio. No entanto, se aqui não comparecem as Três Mulheres do Sabonete Araxá, pois ‘que outros, não eu, a pedra cortem para brutais vos adorarem’, aqui comparecem os locais geográficos do Recife que são de acordo com as características de cada personagem (o poeta, o poeta, esse arrancador de cabelos dos redatores).


Por mais que dermos tratos à bola não conseguiremos imaginar alguma praça, ou rua do Recife, tão feia quanto a cara de Manuel Bandeira, cangulo que engoliu um dia um piano, mas o teclado ficou de fora. Ou mesmo alguma árvore, ou casa, ou rio, com a voz fanha e fina de João Cabral de Melo Neto, entende?, entende?, como ele gostava de pontuar na fala. Ou, quem sabe, um coqueiro, uma palmeira tão delgada e frágil quanto o perfil magríssimo do poeta que era leve, pena, até no nome, Carlos Pena Filho.


Mas, atenção, a má vontade é um crime. Porque o texto deseja se referir mais especificamente à obra dos poetas, conforme a característica dos poemas, não propriamente à figura física dos poetas. Ainda que confunda criador e criação, chega, portanto, de má vontade. Porque concedamos:


A escultura é conforme a obra


Se é assim, está certo. Pausa para um cafezinho, que ninguém é de ferro. Cigarro, não, que dá câncer, mas um cafezinho pode, é, vejamos. Soco na próstata. ‘Santa Clara, clareai estes ares. Dai-nos ventos regulares, de feição. Estes mares, estes ares clareai’, diria o mais feio poeta brasileiro dos últimos cem anos. E olhem, que o páreo é duro. Isto porque … paremos. Porque lemos:




‘A escultura que apresentará João Cabral de Melo Neto trará o escritor sentado em um banco de praça em um gesto contemplativo, com um dos seus livros no colo. Um cachorro dormindo nos pés de Cabral representa uma alusão à obra O Cão sem Plumas.’


Esqueçamos, por ora, o verbo apresentar, que estaria melhor vestido no papel do verbo representar, esqueçamos, que ninguém é perfeito. Mas… e o cão, e o cachorro nos pés de João Cabral, a dormir, por supuesto, porque sem latir, pois cães de pedra não ladram, nem mordem, o que fazer? No texto se diz que o perro representa uma ‘alusão à obra O Cão sem plumas‘. Ah, bom, então onde, a que parte da obra, mais precisamente?
Seria ao trecho ‘A cidade é passada pelo rio/ como uma rua/ é passada por um cachorro’; ou ao, ao ‘Aquele rio/ era como um cão sem plumas…’, ou ao, ao, ainda ‘Um cão sem plumas/ é quando uma árvore sem voz…’?


Paremos, porque João Cabral não merece tamanha asnice, para continuar no terreno animal. Será que a ninguém ocorre que o cão de João Cabral é metáfora, é criação para ilustrar um rio da miséria social do Recife? Será que ninguém vê, ou viu, que o rio é liso como o ventre de uma cadela fecunda, e que nele não se sabe onde começa a terra, onde começa a lama, onde começa o homem, o homem também um cão sem plumas?


Não, porque temos pressa, e vamos logo, e vejamos logo Carlos Pena Filho, porque a ele também está reservada uma escultura onde ‘Carlos Pena Filho está sentado à mesa, em que se encontram bancos e copos. A escultura é uma referência ao famoso poema O Chope que imortalizou o escritor’. Que dizer, hem? Atenção, jornalistas, atenção, pesquisa, atenção homenagens: o texto, ou a escultura, faz referência a um poema jamais escrito por Carlos Pena Filho em toda a sua curta vida! Hem? Esta parece uma barriga mais cheia que a da cadela fecunda. Ora, mas não existem, insistem os sabidos do Departamento de Preguiça e Desleixo, não existem os versos ‘são trinta copos de chope,/ são trinta homens sentados,/ trezentos desejos presos,/ trinta mil sonhos frustrados’? Existem. Então?! Esses versos são ou não são do poema O Chope?


Chamem o síndico. Rápido, porque o nível do condomínio atingiu o inimaginável. Nem o edifício do ‘Balança, mas não cai’, conseguiria semelhante confusão. Pesquisa, olhos e ouvidos abertos, porque:


1. No que se refere a esses versos, eles são parte orgânica de um poema longo e único, por nome de Guia Prático da Cidade do Recife;


2. Esse poema, como um Guia Histórico, Geográfico e Sentimental, recebe divisões a que o poeta deu os nomes de ‘O Início’, ‘O Navegador Holandês’, ‘Manoel, João e Joaquim’, ‘A Praia’, ‘Subúrbios’, ‘A Lua’, Igrejas, ‘O Bairro do Recife’…;


3. Mas nem por isso ‘O Início’, ‘O Navegador Holandês’… são poemas, de existência autônoma – são versos: braços, pernas, olhos, cabeça, peito, mãos de um ser único, indivisível, do poema Guia Prático da Cidade do Recife;


4. Entre os dedos do poema existe um que se chama ‘Chope’ – atenção, ‘Chope’, jamais ‘O Chope’.


Mas, num esforço último, poderíamos considerar: e se a pobre redação não teve culpa de tamanho engano, se tiver sido apenas a reprodução de um release, criado pela Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife?


A fonte da homenagem


No Boletim Diário de 27/7/05 da Secretaria de Comunicação Social, da Prefeitura do Recife, é triste, mas lá se escreve sobre o projeto de homenagem aos poetas do Recife. Com a espantosa chancela do poder público:




‘A escultura representa João Cabral sentado em um banco de praça num gesto contemplativo. Aos seus pés um cão dorme e no colo ele segura um livro aberto com o poema sobre o rio Capibaribe, ‘O Cão sem Plumas’’.


Senhores, essa homenagem é real, então. Ela já foi estudada, pesquisada, aprovada! Testada, aprovada, confirmada. Ele, o poder público, é a própria fonte, limpidamente burra, do texto da repórter. Pode-se dizer, houve um diálogo perfeito entre fonte e notícia: uma perfeita comunhão, o mais belo casamento entre a ignorância e o redigir inocente do mundo. Não é necessário sátira, ou acréscimos, ou desenvolvimentos, ou interpretações. Nada.


O monumento a João Cabral terá um cachorro a seus pés, porque é de sua autoria o poema O Cão sem Plumas! Ele não fala de um cão? Pois. Está lá: ‘A cidade é passada pelo rio/ como uma rua/ é passada por um cachorro… Aquele rio/ era como um cão sem plumas…’. Estará lá, portanto, um cachorro a seus pés. Tudo a ver, tão simples, entende? Então por que não se depõem ao lado do cão muitas plumas, arrancadas, ao chão, pois é a elas que Cabral se refere, quando diz ‘cão sem plumas’? Um cachorro, enfim, que não voa, porque perdeu as plumas, e que se dane a lógica se cachorro é ou não ave… Ou será que tal não está previsto, porque pensam que o cão de Cabral é um cão de plumas coloridas, de avestruz, de plumas e paetês, de escola de samba no sambódromo no Rio de Janeiro? Rio, Rio de Janeiro, tudo a ver, ou tudo haver, como escreveria a repórter.


E a redatora da notícia, justiça deve ser feita, não tem mesmo culpa do acréscimo de um poema à rica obra de Carlos Pena Filho. Porque está lá, como um Raul Solnado, estalá no Boletim da Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura do Recife: ‘A escultura é um conjunto da figura, mesa, bancos e copos. Baseado no poema do escritor O chope‘. Com um acréscimo, reconheçamos: aqui, o poeta recebe a antonomásia de ‘O Chope’. Isto podemos concluir: desesperado, a prever a homenagem que receberia da Prefeitura do Recife, o poeta deu pra beber, e tanto, que passou a ser conhecido como Carlos, O Chope.


Haveria ainda o questionamento, que não é pequeno, da mistura que fazem entre poetas e compositores da música popular, pois Capiba e Luiz Gonzaga também receberão esculturas, e de Clarice Lispector, outra homenageada, a ocupar a vaga de um Joaquim Cardozo. Mas a hora e o humor já não mais agüentam. Portanto, dizemos, enfim: quem sabe se tudo isto não manifesta uma permanência além da vida dos poetas. Matá-los uma segunda vez é uma prova da sua imortalidade.

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Jornalista e escritor