Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a esquerda censura

O Equador realizou o sonho de muitas sociedades latino-americanas ao firmar um governo estável de esquerda com agendas de justiça social. Tal conquista, entretanto, veio com sabor amargo. Um dos governos que mais investe em programas de redistribuição de renda para os pobres na América Latina é também o que mais censura a oposição.

O caso de censura contra o caricaturista Bonil deu a volta ao mundo em uma semana. Num julgamento “expresso”, o governo obrigou-o a fazer uma “correção” e puniu o jornal “El Universo” (que já tinha sido alvo de censura) a pagar uma multa de US$ 90 mil.

Ironicamente, o feitiço se voltou contra o feiticeiro e a versão corrigida ficou melhor do que a original. O caso ganhou as páginas da imprensa internacional, do Brasil à Espanha, da CNN ao “Le Monde”.

Porém, em geral, episódios como esse não têm visibilidade, ficando vulneráveis à censura. A associação de jornalistas Fundamedios, que monitora a liberdade de imprensa e denuncia abusos à Corte Interamericana, foi tomada pelo governo. Depois de anos difamando as credenciais da organização e criando travas ao seu funcionamento, o governo de Rafael Correa agora invoca a nova Lei de Comunicação e o chamado Decreto 16, que torna ilícita toda associação não “registrada”, para pôr um fim ao trabalho independente da Fundamedios.

O caso mais extremo é do deputado Cléver Jiménez, condenado a 18 meses de prisão por injuriar o presidente. Membro do partido indígena Pachakutik, Jiménez vem denunciando casos de corrupção e irregularidades em contratos com firmas petroleiras. Seu escritório e a casa de seu assessor foram invadidos à noite por policiais que confiscaram computadores, celulares e documentos. A caricatura que provocou a ira presidencial retratava precisamente esse episódio.

Modelos de resistência

O deputado contestará a sentença na Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas já contempla a possibilidade de exílio. Além dele, cerca de 200 líderes sociais foram igualmente criminalizados por contestarem grandes projetos mineiros.

Fazer eco às vozes de jornalistas no Equador permite lutar de forma mais efetiva contra a censura obscurantista que o atual governo impõe. Ficar atento à repressão exercida por governos de esquerda nos permite reconhecer uma tendência regional muito além do Equador.

Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega acaba de obter o direito à reeleição indefinidamente; na Bolívia, o segundo mandato do presidente Evo Morales foi marcado pela brutal repressão aos povos originários do território indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis).

Traz imensa desilusão constatar que governos democráticos de esquerda também usam o poder do Estado contra seus cidadãos. Nosso erro talvez tenha sido acreditar que movimentos sociais de esquerda, forjados em anos de resistência contra ditaduras militares, pudessem transformar a essência repressiva do Estado.

Resistir é preciso. Falta somente reinventarmos os modelos de resistência. Essa crise talvez seja a oportunidade de emancipar nossos ideais políticos para além do esquema binário tão persistente quanto obsoleto de direita versus esquerda.

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Manuela Lavinas Picq, 36, é professora de relações internacionais na Universidade de San Francisco de Quito (Equador)