Recentemente, por força da enorme repercussão de vídeo no qual foi exibida acalorada discussão envolvendo alguns integrantes do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, a transmissão ao vivo das sessões foi posta em pauta. Em uma palavra, discute-se se não seria preferível, mais consentâneo com o interesse público, editar as transmissões levadas ao conhecimento da população pela TV Justiça.
Contra a transmissão ao vivo das sessões são opostos argumentos diversificados. Sem qualquer hierarquização da relevância dos fundamentos apresentados, é possível mencionar aquele de acordo com o qual as transmissões ficariam mais atrativas se editadas. Seguindo-se essa linha de raciocínio, os demorados pronunciamentos, notadamente os relatórios enfadonhos nos quais fossem literalmente citadas manifestações anteriores das partes e de autoridades, afastariam o interesse do público pela transmissão das sessões. Além disso, aquilo que não fosse relacionado com a matéria jurídica submetida à apreciação do tribunal deixaria de ser desnecessariamente propagada.
Não há dúvida de que esses argumentos, ao menos à primeira vista, são tentadores. Afinal, o tempo utilizado desnecessariamente poderia ser melhor aproveitado para aquilo que tivesse maior importância – ao menos, para quem fizesse a edição. Ademais, sessões insossas afastariam o cidadão de um Judiciário cada vez mais preocupado em se aproximar dos jurisdicionados – os temas se multiplicam nesse sentido: acesso à Justiça, abertura da hermenêutica constitucional aos intérpretes não formais da constituição, duração razoável do processo, entre outros. Curiosamente, toda essa preocupação surge, precisamente, quando não apenas os estudantes de Direito resolveram assistir ao que se passa no Supremo Tribunal Federal (STF).
Aferição dos benefícios
A ‘riqueza’ dos argumentos contrários à transmissão ao vivo não pára por aí: a qualidade da democracia brasileira não seria afetada pela edição das sessões de julgamento dos tribunais e a compreensão da dinâmica processual poderia até ser aprimorada. De acordo com quem defende esse entendimento, a quantidade de telespectadores seria insignificante e os que assistem às sessões, em sua maioria, não seriam iniciados o suficiente para, de fato, entenderem aquilo que foi dito ou toda a extensão do que foi afirmado. Em síntese, a própria credibilidade do Judiciário seria ameaçada pela difusão de distorções dos seus entendimentos pela patuléia ignara. Além disso, o princípio da publicidade seria resguardado, uma vez que as sessões de julgamento continuam abertas ao público.
No âmbito do Direito Constitucional positivo brasileiro, foram necessários mais de quinze anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), com a Emenda Constitucional nº 45/2004, para, explicitamente, se chegar à conclusão de que não bastava o simples acesso à justiça formalmente assegurado: a justiça itinerante e o funcionamento de órgãos fracionários dos tribunais em cidades do interior dos estados-membros foram positivados. Em outras palavras: o Judiciário deveria se aproximar do cidadão que não tem condições de ir até ele. O antípoda desse entendimento é a defesa das maravilhas do fim da transmissão ao vivo, desde que qualquer cidadão possa sair de Oiapoque, se deslocar até Brasília e encontrar sessões abertas ao público. Ou seja: mais uma vez desembocamos no vetusto formalismo.
Se forem aceitos os argumentos apresentados (o que não se espera), surgem imediatamente alguns problemas difíceis de resolver. Primeiramente, a aferição dos benefícios supostamente atingidos pela proibição das transmissões ao vivo das sessões de julgamento.
Cópia na íntegra da decisão proferida
Se um canal público, presumidamente movido pelo nobre e elevado propósito de satisfazer ao interesse da coletividade, tiver acesso à íntegra da sessão de julgamento do mais elevado tribunal de seu Estado, ele deverá deixar de divulgar as gravações de fatos relevantes? No Judiciário, apenas o conteúdo técnico-jurídico dos julgamentos tem interesse público? O que dizer da transmissão dos eventos relativos ao bicentenário do Judiciário brasileiro e de inúmeras palestras? Se alguns magistrados, durante o exercício de suas atividades, praticarem atos capazes de ruborizar o garçom do bar da esquina, isso não tem qualquer relevância para um canal voltado à cobertura do Poder Judiciário? Em outras palavras, com ou sem transmissão ao vivo, é uma excrescência insinuar que esses dados devam ser destruídos ou mesmo ocultados: as imagens deverão ser imediatamente divulgadas, mesmo sem transmissão ao vivo. Na hipótese mencionada, não se estará diante de uma informação sigilosa, obtida durante um conflito bélico com outro Estado, a merecer um regime jurídico especial no que concerne à sua divulgação com o escopo de resguardar a segurança nacional. Trata-se da avaliação da conduta de autoridades públicas que devem merecer visibilidade.
Se imaginarmos que os responsáveis pela TV Justiça poderão impedir a ampla veiculação dessas imagens que, supostamente, em nada contribuem para a satisfação do interesse público, resta resolver o problema da edição das sessões de julgamento: o que será transmitido? Há algum tempo, o telespectador da TV Justiça pode ter visto um ministro do STF afirmar que, em face da complexidade das manifestações dos integrantes da Corte, tem-se adotado a prática, quando realizado alguns atos de comunicação processual, de se enviar cópia da íntegra da decisão proferida. Com isso, evita-se o risco de se prejudicar a parte interessada ao distorcer o teor de uma decisão proferida. Evidentemente, se os jornalistas fizessem o mesmo, não existiria uma publicação semanal com apenas cem páginas. Ao menos para um leigo como o autor do presente texto, o jornalismo se faz selecionando os incontáveis fatos do mundo e transformando-os em um fato jornalístico ao qual é dado maior destaque (na escolha dos fatos do mundo transformados em fatos jornalísticos entra o aspecto ideológico da comunicação).
‘Bom escândalo’ revigora consciência crítica
O que das sessões de julgamento do STF deveria ser escolhido para transmissão televisiva? A íntegra dos discursos solenes, milimetricamente calculados, proferidos por ocasião de cerimônias oficiais? Certamente, essa poderia ser uma boa opção se o objetivo fosse melhorar a imagem do Judiciário: erudição, espírito público, cordialidade, são algumas das qualidades recorrentes nessas ocasiões (atributos semelhantes são dedutíveis dos discursos solenes dos integrantes de um desgastado Congresso Nacional). Por outro lado, se a exaltação do compromisso do Judiciário com os mais elevados valores republicanos não for considerada melhor do que a transmissão integral das sessões de julgamento (como penso), ainda assim, resta a necessidade de avaliação da transmissão editada das sessões.
O que é relevante durante as sessões? A matéria submetida a julgamento? Os fundamentos apresentados? O entendimento divergente de algum ministro? A decisão? Uma matéria que provoque muitos debates, mas já pacificada no âmbito do STF? Apenas as mudanças de orientação da Corte? Se apenas as mudanças de entendimento receberem destaque da TV Justiça (entendimento reforçado pela idéia da má compreensão dos votos pela patuléia), poderiam ser substituídas as sessões por simples aulas ministradas à distância por professores de Direito das matérias afetadas dedicados ao esclarecimento das novas orientações do Tribunal.
É difícil, senão impossível, dizer de antemão o que tem maior relevância pública para merecer a transmissão em lugar de outros fatos da vida. Podemos questionar: a transmissão de pronunciamentos estranhos ao objeto do processo pode revelar algum interesse público? É evidente que sim. No caso de imprecações entre ministros, tem-se a real dimensão dos envolvidos. As suas qualidades são reconhecidas por quem acompanha as suas atividades profissionais, mas sem mistificação. Não se trata de prestigiar ou não o Judiciário, a mistificação dos seus integrantes deseduca a população, aliena-a de uma percepção crítica em relação ao funcionamento da máquina pública em todos os níveis.
O ‘bom escândalo’ revigora a consciência crítica do cidadão. Por meio dele, o diamante revela-se apenas um pedaço de vidro quando visto de perto. A ocultação de informações relevantes pode criar, artificialmente, uma imagem positiva para o Judiciário, mas em nada atende ao interesse de controlar o poder. O prestígio do Judiciário, assim como o de qualquer órgão público, deve ser conquistado pela grandeza de sua atuação, pelo exemplo.
Gravações não poderão ser escondidas
Qual é o advogado atuante, no Brasil, que desconhece casos muito mais impactantes envolvendo manifestações de magistrados em salas de audiência do que o transmitido pela TV Justiça? As mensagens eletrônicas com fotos de portarias escandalosamente contrárias à Constituição são freqüentes. Ainda assim, quem conhece a atuação dos magistrados sabe que esta não é a regra e a credibilidade do Judiciário não é comprometida exatamente quando da toga se desvela um ser humano, cheio de defeitos como qualquer um.
No Brasil, acontecimentos desagradáveis têm criado condições políticas favoráveis para tirar da gaveta algumas propostas positivas. Há quanto tempo se discute na literatura especializada a duração máxima de permanência de um ministro no STF e mesmo o modo como é feita a seleção dos mesmos? Com o despertar do interesse da população pelo funcionamento do STF, podem surgir condições políticas favoráveis para mudanças. A deificação das autoridades favorece a inércia. Se um tribunal é composto por 11 pessoas capazes, dedicadas, equilibradas, discretas, onipresentes, onipotentes e oniscientes, para que discutir a sua composição? Para que renová-lo? Por que não deveríamos manter o mesmo ministro por mais de vinte anos no excelso pretório?
Em que pesem as inúmeras questões suscitadas e não respondidas explicitamente ao longo do texto, resta a convicção de que a imagem positiva do Judiciário não pode depender de qualquer obstáculo à apreciação crítica por parte do cidadão. Com ou sem transmissão ao vivo das sessões de julgamento, suas gravações jamais poderão ser escondidas sob o tapete ou mesmo ter a violência de seus traços camuflada por uma maquiagem fora de moda.
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Professor de Direito Constitucional do Curso de Direito do Departamento de Educação do Campus XV da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Valença, BA