Errar é humano, afirma o ditado. Mas é bom não esquecer que existem diferentes tipos de erros, cada um com os seus próprios desdobramentos. Veja o caso dos testes de gravidez. São duas alternativas, mutuamente excludentes: ou dá positivo, ou dá negativo. O primeiro resultado indicaria que a mulher está grávida, o segundo que ela não está.
Os testes de gravidez, no entanto, não são cem por cento seguros. Seus resultados podem ser enganosos. Diz-se, mais especificamente, que os resultados têm uma determinada margem de erro – para comentários e detalhes adicionais, ver aqui. São quatro alternativas, incluindo o falso positivo e o falso negativo (as outras duas são o positivo verdadeiro e o negativo verdadeiro).
O falso positivo é aquele resultado que diz que a mulher está grávida, quando ela de fato não está. O falso negativo diz que a mulher não está grávida, quando ela de fato está. No âmbito científico, esses resultados equivalem aos chamados erros do tipo I e II. Erros do tipo I ocorrem quando rejeitamos como errada uma hipótese nula (ver aqui) que de fato está correta; erros do tipo II ocorrem quando aceitamos como certa uma hipótese nula que de fato está errada.
O segmento dos livros didáticos
Erros ocorrem simplesmente porque o número de alternativas erradas é quase sempre muito superior ao das corretas. Essa regra vale para todo e qualquer empreendimento humano, incluindo a escrita: quanto mais escrevemos, mais nos tornamos expostos ao erro. Constatar isso não significa concordar ou arrefecer diante do “inevitável”; sempre é possível fazer alguma coisa no sentido de combater o problema.
No meio editorial, particularmente no caso das editoras que lidam com livros didáticos, o maior pesadelo talvez seja a proliferação dos chamados “erros e mal-entendidos conceituais”. Cabe aos revisores técnicos detectar e corrigir esses problemas.
A atuação desses profissionais ganhou algum relevo entre nós a partir da década de 1990, com a progressiva implantação dos programas governamentais de aquisição de livros didáticos. Como o governo federal faz uma pré-seleção do material, durante a qual as obras problemáticas são excluídas, as editoras passaram a se preocupar mais com o conteúdo do que publicam.
Revisores de texto e revisores técnicos
A presença de um revisor técnico ainda é, no entanto, algo raro, excetuando-se talvez o universo das editoras que atuam no segmento dos livros didáticos. O que muitas editoras em geral fazem é submeter os manuscritos ao exame de um revisor de texto. (Conheço algumas que não fazem nem isso.) Esses profissionais cuidam do alinhamento do texto, corrigindo erros ortográficos e gramaticais e adequando o manuscrito a um determinado padrão de apresentação. Eles, no entanto, não caçam erros e mal-entendidos conceituais.
Diferentemente dos revisores de texto, cuja intervenção independe do conteúdo do manuscrito, a intervenção dos revisores técnicos visa exatamente o conteúdo. Por isso mesmo, a faixa de atuação deles é bem mais estreita. O revisor técnico de uma obra de astronomia, por exemplo, dificilmente conseguirá fazer um bom trabalho em uma obra de biologia, e vice versa. As editoras habituadas a contratar os serviços desses profissionais têm as suas próprias listas de possíveis colaboradores, recorrendo a um ou a outro de acordo com a obra que está sendo produzida.
A participação de um revisor técnico não é, claro, garantia de que o livro estará livre de problemas. Sem a participação deles, no entanto, aumentam muito as chances de que erros e mal-entendidos conceituais proliferem, ainda que a obra esteja perfeitamente alinhada em termos ortográficos e gramaticais.
Erros conceituais
Mesmo com a participação de revisores técnicos, é muito raro encontrar um livro didático livre de erros. Cabe observar, no entanto, que nem todos os erros encontrados em um livro podem ser apropriadamente rotulados de conceituais.
Por exemplo, as afirmativas “2 + 2 = 5”, “Buenos Aires é a capital do Paraguai” e “bactérias são providas de núcleo” estão todas erradas. A nenhuma delas, porém, caberia o rótulo de “erro conceitual deliberado”. Em todos os três casos, a origem do erro pode ter sido acidental – e.g., acidentes durante a digitação: “5” em vez de “4”, na primeira; “é” em vez de “não é”, na segunda; e “providas” em vez de “desprovidas”, na terceira.
Considere agora as seguintes afirmativas: “o verão é a estação mais quente porque nessa época do ano a Terra está mais próxima do Sol”, “o elemento químico mais abundante no Universo, na crosta terrestre e no corpo dos seres vivos é o hidrogênio” e “os animais não sobreviveriam sem as plantas, o que nos permite concluir que as plantas surgiram antes dos animais”. Todas essas afirmativas contêm erros conceituais, nenhum dos quais poderia ser facilmente atribuído a um acidente de digitação ou diagramação.
Os três últimos exemplos ilustram o que poderíamos chamar aqui de “erro conceitual deliberado”, uma expressão que envolve noções importantes. O termo “conceitual”, por exemplo, indica que o erro resulta de uma interpretação equivocada de um determinado conceito; “deliberado” salienta que o erro não foi acidental, mas sim o resultado de uma ação (consciente ou não) deliberada por parte de quem escreveu o texto.
Os três erros conceituais mencionados acima não são tão óbvios como os três erros citados antes. Quer dizer, detectar e corrigir o que há de errado na frase “o verão é a estação mais quente…” não é uma tarefa tão simples e fácil como corrigir o que há de errado na afirmativa “2 + 2 = 5”.
Uma categoria insidiosa
Toda essa variedade de problemas não se restringe ao universo dos livros didáticos. Pense, por exemplo, no processo de tradução para o português de uma obra que foi originalmente publicada em outro idioma. As reclamações em torno dessas obras são bastante comuns.
Alguns relatos envolvem casos grotescos, como as edições piratas (i.e., aquelas cujo tradutor é fictício), as traduções indiretas (i.e., aquelas cuja versão em português não é elaborada com base no original, mas sim a partir de uma tradução anterior para outro idioma) ou ainda as traduções que são visivelmente ruins (para um exemplo recente, ver artigo “O abade Abbot”, de Rafael Cariello, publicado na revista piauí, em novembro de 2013).
Deixando de lado os casos mais grotescos, ainda temos pela frente uma categoria particularmente insidiosa: as traduções enganosamente confiáveis (como talvez seja o caso do livro A dupla hélice, recém-lançado pela editora Zahar – ver, neste Observatório, “A hélice quebrada”). Essas versões, ainda que desprovidas de erros grosseiros, ostentam trechos ou conceitos-chaves mal traduzidos, os quais podem induzir o leitor a erros e mal-entendidos conceituais.
Um exemplo familiar é o caso dos termos em inglês “fitness” (aptidão) e “inclusive fitness” (aptidão inclusiva), tão caros em biologia, cuja tradução para o português tem dado margem a uma série de barbeiragens, incluindo coisas como “ajustamento” e “ajustamento inclusivo” e “adaptação” e “adaptação inclusiva” – para comentários e detalhes adicionais, ver, neste Observatório, “Nem sempre é culpa da mídia”.
O caso “10 – 7 = 4”
Um dos problemas aqui é que a mídia não costuma apontar os seus holofotes para os problemas mais sérios e profundos. A mídia ama o estardalhaço, algo que não combina muito bem com rigor ou profundidade.
Um exemplo famoso, mais ou menos recente: em meados de 2011, diversos veículos da imprensa fizeram um barulho danado em torno de um “erro grosseiro” que havia sido detectado em uma coleção de matemática adquirida pelo governo federal – ver, por exemplo, as matérias “MEC abre sindicância para apurar falha em livro com erros grosseiros de matemática”, de Demétrio Weber, publicada em O Globo, em 3/6/2011; e “Haddad deve ser convocado para explicar livro com erros”, de Rafael Moraes Moura, publicada no Estado de S.Paulo, em 4/6/2011.
Seria todo esse barulho um sinal de que a mídia brasileira está preocupada e vigilante com a educação de nossas crianças? Não creio. Vejo tudo isso mais como um jogo de cena ou pura gaiatice. Estivessem de fato preocupados com alguma coisa, esses veículos não ficariam apenas na superfície. Afinal, por que repórteres e editores não apontam os seus holofotes, ao menos de vez em quando, para as entranhas dos livros didáticos? Não sei dizer ao certo, mas tenho um palpite: é chato, é trabalhoso e, o que é pior, não costuma atrair audiência.
Exercitar o senso crítico
Discutir seriamente os problemas dos livros didáticos usados nas escolas brasileiras exigiria, entre outras coisas, que trocássemos a bermuda do senso comum pela manta do senso crítico. Ocorre que esse tipo de exigência costuma afugentar o público, especialmente no caso das emissoras de televisão – quem liga a TV à noite para se “informar” tende a se comportar como o filósofo Homer Simpson (ver, neste Observatório, “Por que o Jornal Nacional adora Homer Simpson”).
Ora, se os aspectos mais profundos e importantes de uma questão não dão audiência, eles que sejam deixados de lado. As pautas então se voltam para a superfície, querendo convencer o público de que certos aspectos óbvios e grosseiros – i.e., erros do tipo “10 – 7 = 4” ou “16 – 8 = 6”, como foi o caso das matérias citadas antes – são o fim da picada. Não são. Na verdade, estão bem longe disso.
O fim da picada, a rigor, é a livre proliferação de erros conceituais. E não estou aqui me referindo apenas e tão-somente ao universo dos livros didáticos; estou pensando no universo cultural em que nós, brasileiros, estamos mergulhados.
Pense: quantos problemas absurdos – e.g., veículos que rotineiramente invadem e atropelam pedestres que estão na calçada (ver matérias “Carro invade calçada e atropela seis pessoas no Centro de Belo Horizonte”, de Cristiane Silva, publicado no Estado de Minas, em 18/12/2012; e “Maître invade calçada e atropela pedestres na Zona Sul de SP”, publicada no portal G1, em 25/4/2013) – poderiam ser evitados se nós simplesmente exercitássemos um pouco – digamos, uma ou duas vezes ao dia – o senso crítico, esse músculo tão atrofiado do nosso corpo?
Mas tratar desse tipo de pauta com alguma seriedade exigiria sair da sombra da inércia, um esforço que parece estar além do alcance ou dos interesses da grande mídia que temos. Sei que a inércia tem uma explicação, mas vê-la “em ação” não deixa de ser angustiante.
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)