Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diversidade e unidade da língua portuguesa

O Canal Brasil, presente na grade de programação de quase todas as operadoras de TV por assinatura, tem um lema: “Vários sotaques, uma só língua”. Pois no dia 09/07 (00h15min), no programa “Mostra do Cinema Português”, a emissora não seguiu seu justo mote. O apresentador Ricardo Pereira, português de nascimento, anunciou o filme da noite: A outra margem, do realizador Luís Felipe Rocha (2007, Portugal), em português do Brasil. Com o acento dos cariocas. O ator já conhece o Brasil há um bom tempo, e agora vive no Brasil.

Enquanto Ricardo apresentava a película aos telespectadores, um pensamento cruzou minha mente: “Depois desta introdução feita por um lusitano em perfeito português brasileiro, só falta agora exibirem uma fita com legendas e gente brasileira no elenco”. Dito e feito: mal começou a conversação, e lá estavam os subtítulos e os brasileiros na tela. Se o canal Brasil tem “vários sotaques, e uma só língua”, para que as legendas? Nossos falares tornaram-se tão diferentes que agora precisamos de tradução e legendas para manter conversação? Enquanto isso, na fita, portugueses e brasileiros conversavam naturalmente. Entendiam-se perfeitamente. Mas havia legenda na tela. O paradoxo foi constrangedor e não guardava relação com o que acontecia na fita e na vida.

Acaso não podemos dialogar entre nós, brasileiros, portugueses, angolanos, timorenses, e todos os povos de fala portuguesa, sem necessidade de tradutores? Há dificuldades em entender o que falam os portugueses, mesmo quando eles conversam com brasileiros em um filme? Os diálogos não fluem naturalmente na cena em tela e fora dela também? Acaso alguém esqueceu a memorável cobertura que a RTP fez da Primeira Guerra do Iraque em 2003? Alguém por acaso teve dificuldade de entender o que falava lá de Bagdá o excelente Carlos Fino? Não podem os portugueses assistir à programação brasileira sem necessidade de legendas? Não compramos e vendemos, brigamos e festejamos sem precisar de tradução? Por que legendar os filmes?

Som de má qualidade

A resposta a esta pergunta guarda mais relação com o áudio do cinema nos dois países do que com a evolução da língua. Filmes mais antigos dos dois países muitas vezes têm um acabamento acústico que deixa muito a desejar. E quanto mais velhos, pior a coisa fica. Se há uma crítica comum a dois tipos de cinema tão distintos é esta: a má qualidade do áudio, que leva a dificuldade de compreensão das palavras a todos, sem distinção para brasileiros ou portugueses. O som é ruim para todas as audiências.

As fitas mais recentes apresentam melhor qualidade de áudio. As mais antigas precisam ser remasterizadas, ruídos de fundo de equipamentos analógicos demandam remoção, e uma nítida relação figura-fundo deve ser estabelecida com clareza: a voz precisa destacar-se do fundo, do ruído do ambiente ao redor dos diálogos, para tornar-se compreensível. Agudos e graves precisam de equalização correta, do contrário os tons médios, que carregam os diálogos, perdem-se num mar de sons em mesma frequência que cancelam uns aos outros. E aí ninguém entende nada.

Não somos, como muitos ainda insistem em afirmar, “dois povos divididos pela mesma língua”. O meu acento não impede que eu converse sem tropeços não só com portugueses, mas com os galegos também. Somos divididos, muitas vezes, pela má qualidade das transmissões da mídia, por regionalismos, escolhas de vocábulos específicos, e uma fonética diferenciada. Mas há quem entenda diferente. O jornalista Nelson Motta uma vez disse que os portugueses falam uma língua “levemente parecida com a nossa”. Estaria a brincar, o Nelson? Não creio nisso. Não gostei nada do que disse o Nelsinho.

Língua brasileira

Há quem pense que já não falamos português, no Brasil. Não estaríamos mais a falar o português, mas brasileiro. A professora Eni P. Orlandi, do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, em seu artigo de 2005 “A Língua Brasileira”, explica:

“Esta é uma questão que se coloca desde os princípios da colonização no Brasil, mas que adquire uma força e um sentido especiais ao longo do século XIX. Durante todo o tempo, naquele período, o imaginário da língua oscilou entre a autonomia e o legado de Portugal.” (Cienc. Cult. vol.57 nº.2 São Paulo Abril./Junho 2005)

Durante a Assembléia Constitucional de 1823, explica a autora, tínhamos “pelo menos” três posições definidas e antagônicas sobre língua falada no Brasil: a da defesa da língua brasileira, outra que defendia o português como fonte de unificação, e os legalistas que “decidiam pela língua legitimada, a língua portuguesa”. Ao final, o português foi escolhido por decreto como língua oficial do Brasil. (B. S. Mariani e T. C. de Souza. Organon 21, Questões de Lusofonia, vol.8 , nº 21)

Depois da Assembléia, a insistência em nomear uma “língua nacional” brasileira continuou. Em 1827, explica a linguista, aprovamos uma lei que defendia o ensino de uma língua nacional: “nem brasileiro, nem português, mas língua nacional.” Nativistas românticos opunham-se aos que defendiam o legado da herança portuguesa acima das particularidades locais. Entrou para a História o debate de 1870 entre o escritor brasileiro José de Alencar, a defender a posição brasileira nativista, e o português Pinheiro Chagas, que afirmava o legado linguístico de Portugal (“História da Semântica”, Eduardo Guimarães, 2004).

A discussão adentrou o século 20. Em 1930 surge um debate na Câmara do Distrito Federal sobre o nome da língua falada no Brasil. Novamente, impôs-se o consenso de uma “língua nacional” indefinida. Em 1946, mais uma vez por decreto legal, a Constituição Brasileira decide o nome da língua falada no Brasil: é o português.

A discussão que a autora trouxe foi relevante, mas não esclareceu o suficiente, do ponto de vista linguístico – se aqui no Brasil falamos português ou brasileiro –, nem explicou a origem da língua portuguesa. Deteve-se na escolha do nome que os brasileiros deveriam chamar a língua que falavam.

Ancestral comum

Essa é uma questão que estava a incomodar-me há anos. Em 2010 (09/11), aborrecido com um tradutor francês que acredita que Brasil e Portugal falam línguas diferentes, decidi fazer minha própria pesquisa, para argumentar com o sujeito. Entrei em contato com o professor da Universidade de Vigo Carlos Garrido, à época Presidente da Comissão Linguística da Associação Galega da Língua (CL-AGAL), através do Portal Galego da Língua. Garrido pertence a um movimento cultural chamado “reintegracionismo linguístico galego-português”. Sua resposta trouxe contribuições fundamentais para o debate:

“O galego, o português e o brasileiro são variedades ou normas da mesma língua, língua que nasceu como diferenciação de latim no canto nor-ocidental da Península Ibérica no território da antiga Gallaecia. Esta língua conhece-se internacionalmente sob o nome de ‘português’, e na Galícia, habitualmente, sob os nomes de ‘galego-português’ ou, simplesmente, de ‘galego’.

“O caso da língua portuguesa (ou galego-portuguesa) é similar ao de outras grandes línguas de difusão pluricontinental: são sistemas pluricêntricos, articulados em várias normas ou variedades, as quais, por cima de legítimas peculiaridades (fonéticas, lexicais, sintáticas), se apresentam como sistemas coesos. ”

A coisa agora ficou mais clara: o português do Brasil e o de Portugal têm um ancestral comum. Os dois descendem do “galego-português”, e são criações originais que surgiram a partir do Galego. Não há uma “língua comum unitária”, mas, antes, três derivações originais de uma mesma matriz compartilhada por Brasil e Portugal e Galícia. Cada uma delas seguiu seu próprio caminho na História.

Diante da argumentação sólida do professor Garrido, fica mais fácil entender que não importa o nome da língua que falamos aqui no Brasil, seja ela português, português do Brasil, ou brasileiro. O importante é entendermos que a nossa língua passou por um processo de difusão policêntrico, que originou singularidades e variações locais, mas manteve a coerência ancestral que permite a brasileiros, portugueses e galegos reintegracionistas comunicarem-se sem nenhum problema. Falamos uma língua comum que possui grande “diversidade interna”, de acordo com Garrido, graças a sua evolução diferenciada em diferentes partes do globo.

Hoje, podemos afirmar que vivemos, em termos linguísticos, num universo lusófono que permite uma variedade linguística ampla dentro de uma matriz ancestral comum. Assim poderemos entender melhor o lema do Canal Brasil (“Vários sotaques, uma só língua”). Realmente, a língua é uma só, com variações locais que não deveriam separar os que a falam. A idéia de um português unitário ignora a História da língua em suas várias expressões em diferentes continentes. Por isso é tão difícil aceitar o Acordo Ortográfico: a grafia unificada conspira contra a diversidade interna historicamente conquistada da língua portuguesa em todas as partes.

Mas, e as legendas? São mesmo necessárias? Se forem para resolver problemas de áudio, que seja: legendaremos os filmes por imposição técnica. Em outros casos, quando não há problema com a transmissão do som, os subtítulos só atrapalham. Não levam as audiências de outros países lusófonos ao hábito de ouvir o falar distinto das variações da nossa língua comum em outros continentes, e ao fazê-lo ajudam a reforçar a ideia equivocada de que falamos línguas diferentes.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor