Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Caçar delator tira foco sobre os limites de espionagem

A caçada ao ex-analista da CIA Edward Snowden está ofuscando o debate sobre um necessário e urgente “código de conduta” para grandes corporações e governos ao lidar com a informação digital.

“Governos sempre se espionaram, mas é diferente quando milhões de indivíduos têm a privacidade violada”, afirma o professor de relações internacionais da Universidade Harvard Stephen Walt, 58.

Ex-diretor acadêmico da Escola de Governo Kennedy de Harvard, ele é um dos maiores críticos a como a mídia e o governo dos EUA tratam a revelação do vasto sistema secreto de espionagem.

Em artigo no jornal britânico “Financial Times”, sugeriu a Barack Obama conceder o perdão presidencial ao delator. Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha:

O Brasil e alguns países europeus já reclamaram da espionagem de seus e-mails. O que esperar?

Stephen Walt– Todo governo faz espionagem de outros governos. Os EUA devem fazer do brasileiro, assim como o do Brasil deve espionar o americano. A novidade aqui é a espionagem de cidadãos comuns, do comportamento individual. O cidadão brasileiro deve protestar e pedir aos políticos brasileiros que exijam que os EUA parem com essa espionagem.

Isso teria resultado?

S.W. – O que ficou claro é que não há um código de conduta para grandes corporações, governos e indivíduos a respeito do que fazer com suas bases de dados. Não há consenso nem leis. Os países precisam aproveitar a oportunidade e começar essa discussão. Não é a ONU que vai discutir isso.

Nos EUA, o debate se concentra na caçada humana a Edward Snowden e quase ignora a espionagem do governo. Não houve surpresa?

S.W. – A maioria dos americanos não sente que é alvo da espionagem, pensa que só “gente perigosa” tem o que temer, o que é um tanto ingênuo. Um grande problema de um banco de dados assim é o de ser violado por alguém no futuro, algo inevitável. Para 55% dos americanos, Snowden é alguém que alertou para um problema, enquanto 36% o veem como traidor. A maioria acha que ele colocou luz em coisas erradas que estavam escondidas. Mas não causou escândalo. Muita gente acha que somos espionados o tempo todo pelas empresas de internet.

Snowden virou o assunto único aqui nos EUA.

S.W. – Parte do debate de Snowden é sobre seus porquês, quem o estaria ajudando, se os inimigos do país, e menos sobre o que ele denunciou. A mídia em Washington tem uma relação simbiótica com o poder, com o governo. Há cooperação e cooptação, independentemente de qual partido esteja no poder. Não querem falar da espionagem.

O sr. defende que Barack Obama dê o perdão presidencial a Snowden. Mas o governo não quer uma punição exemplar para evitar novos delatores?

S.W. – Obama deveria dar o perdão presidencial. Snowden fez o que fez por motivos louváveis, coerentes com a retórica de Obama, de defender a liberdade individual e a transparência do governo. Ele não vendeu as informações a um governo estrangeiro, como espião tradicional. Um vasto sistema secreto de vigilância pode ser usado com fins mesquinhos em pouco tempo. [O ex-presidente Richard] Nixon foi perdoado, assim como envolvidos no Irã-Contras [escândalo dos anos 80 em que os EUA venderam armas ao Irã por um esquema escuso, que envolvia rebeldes na Nicarágua].

Mas Obama quer punição exemplar para evitar novos delatores, não?

S.W. – Se Snowden for exilado, vai continuar a ser uma figura polarizadora ou até um mártir no mundo por muitos anos. Perdoado, ele atrairia menos atenção. E não seria melhor deixar isso para trás e debater o que foi vazado? Não foi por isso que Obama se negou a processar as autoridades dos anos de George W. Bush [2001-09] que autorizaram a tortura?

Tiranos e revolucionários fracassados costumavam pedir asilo. Hoje, são idealistas que acreditam na transparência da democracia. Se Snowden fosse chinês ou iraniano e tivesse vazado informações sobre espionagem, daríamos asilo ao herói.
A punição duríssima contra Snowden ou [Bradley] Manning [soldado dos EUA preso desde 2010 por repassar informações ao site WikiLeaks] tenta conter os vazamentos de informação, mas isso já é uma raridade. É um passo arriscado, raro, alguém dentro dessas organizações ter coragem para isso.

Como o sr. compara Snowden a Bradley Manning?

S.W. – Há uma grande diferença entre Snowden e Bradley Manning/WikiLeaks. Ao trabalhar com [o jornal britânico] The Guardian, os jornalistas e editores responsáveis selecionaram o que deveria ser divulgado ou não, checaram informações, exerceram a seleção crítica, responsável. Uma organização de mídia que soube tratar dos papéis confidenciais. Não despejaram a informação sem filtro ou sem pensar nas consequências, como o WikiLeaks.

E Obama o perdoaria?

S.W. – É cedo para dizer, mas é improvável. Obama não parece corajoso a esse ponto, ainda que presidentes tomem decisões polêmicas no final de seus governos, quando já não precisam mais ser reeleitos. Não estou surpreso que Obama não tenha desmontado os sistemas de vigilância do governo Bush. Nunca pensei que ele seria muito progressista. É um centrista. Em alguns sentidos, até aumentou a escala de espionagem e a perseguição a jornalistas.

Delações como a dos Papéis do Pentágono [documentos secretos sobre a dificuldade da Guerra do Vietnã, vazados em 1971 pelo analista militar Daniel Ellsberg] seriam impensáveis hoje?

S.W. – O governo Obama tem se mostrado muito mais agressivo em processar delatores e correr atrás de jornalistas que deram furos de reportagem, sempre em nome da segurança nacional. Isso não é saudável. Delações sobre abuso de poder de autoridades são necessárias à democracia.

Ícones da esquerda americana, como a senadora Dianne Feinstein, chamam Snowden de traidor. Por quê?

S.W. – As linhas políticas de quem defende ou ataca Snowden estão embaralhadas, não é democrata versus republicano. Quem acha que os EUA sofrem ameaças graves de terrorismo aceita a perda de liberdades. Quem acha que essas ameaças são um exagero, como eu, defende as liberdades individuais. O que aprendemos com essa polêmica é que é otimista pensar que o Congresso faça uma supervisão séria desse sistema [de espionagem].

A América Latina deve esperar sanções dos EUA se asilar Snowden?

S.W. – No último século, os EUA tiveram papel dominante no hemisfério, e países que tentaram desafiá-los sofreram pressões adicionais. Pode ocorrer isso com quem oferecer asilo a Snowden, mas seria algo infeliz piorar nossas relações com a região, contra nossos próprios interesses, por causa de um indivíduo.

O que o sr. acha da negativa do governo Obama de chamar o golpe militar no Egito de “golpe”?

S.W. – Obviamente houve golpe militar no Egito, mas o melhor que Obama tem a fazer lá é uma “negligência benevolente”. Ele não pode chamar de golpe, porque nossas leis o obrigariam a cortar a ajuda militar. Mandamos dinheiro para lá para reter influência, ainda que ela seja limitada. Se fosse para ajudar mesmo o Egito, os EUA enviariam comida, não ajuda militar.

Como seria?

S.W. – Os US$ 2 bilhões [R$ 4,47 bilhões] em brinquedos militares para o Exército egípcio poderiam ajudar o povo egípcio, que hoje precisa mais de comida, turismo, luz e água. Revoluções têm reviravoltas, antes de qualquer estabilidade, da Francesa à Russa. Mesmo a americana –nossa Constituição levaria uma década para ficar pronta depois da independência, com focos de oposição. Certamente os britânicos na época disseram que não estávamos preparados para nos autogovernar.

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Raul Juste Lores, da Folha de S.Paulo em Washington