O que é produção independente? E produção regional? As respostas parecem simples, mas estão longe de ser questão fechada no Brasil. As divergências se revelam no embate entre definições da academia, práticas de um mercado efervescente e um ordenamento jurídico vasto sobre o tema. Para a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a importância de delinear melhor esses conceitos é ponto fundamental na discussão sobre sua missão e princípios norteadores, além de determinar o cumprimento de uma obrigação legal.
Para Ana Fleck, presidenta do Conselho Curador da EBC, é preciso avaliar que critérios a EBC vem utilizando para definir o que é produção independente ou não. “Essa é uma pauta interessante e importante para o Conselho Curador, cuja missão é, primeiramente, zelar pelo cumprimento dos princípios previstos na lei de sua criação”, diz.
A lei de criação da EBC (lei nº 11.652/08) diz que um dos princípios que devem ser observados na prestação dos serviços de radiodifusão pública é a promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente. Além disso, a legislação determina a garantia dos mínimos de 10% de conteúdo regional e 5% de conteúdo independente na programação semanal dos meios da EBC, no horário compreendido entre 6h e 24h. “Costumo dizer que buscar conteúdos na produção independente é nosso dever e nossa salvação. Está previsto na lei um percentual mínimo da grade que precisa ser adquirido da produção independente. E é dela que vamos tirar novas ideias, arejar as grades de programação”, defende Eduardo Castro, Diretor-geral da Empresa.
Segundo a professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e também cineasta, Dácia Ibiapina, o conceito de produção independente ainda não está consolidado e existem interesses diversos que pressionam para que ele continue assim. “Se o que é ser independente for claramente definido, muita gente que está dentro terá que sair. Essa produção atinge um leque muito grande, desde um pequeno coletivo de arte até as maiores produtoras de cinema do Brasil”.
A mesma lei nº 11.652/08 explica que conteúdo independente é todo aquele cuja empresa produtora, detentora majoritária dos direitos patrimoniais sobre a obra, não tenha qualquer associação ou vínculo, direto ou indireto, com empresas de serviço de radiodifusão de sons e imagens ou prestadoras de serviço de veiculação de conteúdo eletrônico. A definição é reforçada por decisões como a Medida Provisória nº 2.228-1/01, a lei nº 12.485/11 e a própria Constituição Federal, em seus artigos 221 e 222.
Em seu Plano de Trabalho para 2013 afirma-se que 15% de toda grade da TV Brasil é formada por produção independente. O Plano define que, para o cômputo dos registros, considerou-se independente a obra que tem 51% ou mais dos seus direitos patrimoniais sobre o domínio do produtor, como determina a legislação.
Esse entendimento, porém, não é consensual na classificação do conteúdo veiculado pela EBC. Nereide Beirão, Diretora de Jornalismo da EBC, pondera que todos os programas produzidos fora da casa que estão sob a responsabilidade de sua Diretoria têm mais de 51% dos direitos comprados pela EBC, o que os descartaria da definição de independente dada pela lei nº 11.652/08. Um exemplo são os programas “Papo de mãe” e “Nova África”, apresentados no Plano como independentes. Na visão de Nereide, eles poderiam mesmo ser enquadrados assim, pois, para ela, o tipo de seleção e produção determina mais se um programa é independente do que os direitos patrimoniais dele.
“Se formos fazer uma interpretação fria da lei, temos 0% de produção independente nas rádios, porque, em nossos contratos, 100% dos direitos são da EBC”, reitera Bráulio Ribeiro, Gerente Regional da Rádio Nacional da Amazônia. Contudo, o índice apresentado pela rádio é de 2,5% de programação independente em sua grade. Bráulio acredita que 2013 tem sido um ano de ajustes na conceituação dos índices e contratos da Empresa e explica que é mais fácil enquadrar novos contratos dentro das regras de direitos patrimoniais do que rever os antigos.
Marco Altberg, presidente da Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão (ABPITV), defende a definição dada pela legislação, porém pondera que existe uma diferença entre a produção e o produtor independente. “O produtor não deixa de ser independente se estiver produzindo para um canal sem a maioria dos direitos, mas o produto deixa. Existem canais que terceirizam quase toda grade, mas o conteúdo não é independente”, explica.
Em abril deste ano, a EBC apresentou um projeto inicial de padronização do conteúdo em todos os seus veículos. Além disso, têm unificado os meios de contratação da produção independente na casa (confira nos quadros abaixo). “Avançamos bastante. Lançamos o Portal da Produção como porta de entrada para conteúdos independentes. Hoje em dia, ninguém precisa marcar hora, ou vir ao nosso encontro, para apresentar um projeto para a nossa programação, seja de rádio, TV ou multimídia”, afirma Eduardo Castro.
Fomento e distribuição
Dácia acredita que muitas produtoras são independentes em relação às emissoras, mas dependentes quanto ao fomento. Para a professora, um conceito mais rígido de independência é aquele em que o produtor coloca seu dinheiro na produção e ganha na hora da comercialização. “Em outros países isso é uma realidade, mas no Brasil, o dinheiro vem do governo. Isso nos levou à uma dificuldade, porque o audiovisual no país hoje trabalha muito colado com a política”, afirma.
Mais de 95% das obras independentes produzidas no país captam recursos na Agência Nacional do Cinema (Ancine). É o que o órgão chama de fomento direto. Em 2012, foram investidos mais de R$ 43 milhões nessa modalidade. O dinheiro, que sai das contas do governo federal e passa para as mãos das produtoras via seleções, vem principalmente do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), uma categoria de programação específica do Fundo Nacional de Cultura (FNC). O FSA se divide em cinco linhas de ação e uma delas é voltada especificamente para televisão, o Prodav, Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro. Existem também programas direcionados ao setor cinematográfico.
Além disso, a produção independente pode receber investimentos de capital privado. O fomento indireto é feito por meio de renúncia fiscal, regulamentada pela Medida Provisória 2228-1, que criou a Ancine. Nesses casos, as empresas podem patrocinar o produto, expondo sua marca, ou até mesmo co-produzindo a obra.
Ao contrário da professora universitária, Marco Altberg não acredita que esse modelo compromete a autonomia dos produtos. “O dinheiro não é do governo, são mecanismos. De fato, existe um zelo por parte da Ancine sobre os recursos públicos, e aí pode se ter uma grande margem de discussão, mas eu não vejo a independência do produtor ameaçada por um patrocínio, tanto governamental quanto privado”, fala.
Bráulio Ribeiro diz que, no rádio, a situação é mais complicada: o dinheiro simplesmente não chega aos produtores. “Não existe locus de política de fomento de produção sonora. A ARPUB (Associação das Rádios Públicas do Brasil) está fazendo as vezes do fomentador, mas falta organização do setor e falta regulamentação do governo”, fala.
Os três, porém, concordam em um aspecto: o grande problema da produção independente é a sua distribuição. Dácia acredita que, em um país onde há uma grande concentração de meios e esses produzem quase que a totalidade do conteúdo que veiculam, quase toda produção fomentada nunca chega a ser consumida.
Para ela, o problema passa longe da falta de público. A solução seria, na realidade, abrir a janela de exibição. Ela defende que o brasileiro já consome muito audiovisual e que esse público só precisa ser conquistado para produção nacional. “Se você aumenta o acesso, isso vai acontecer naturalmente. Eu não acredito em dirigismo cultural. Não adianta falar pros estudantes verem filme brasileiro, facilitar o acesso é o caminho”.
Renato Marques, produtor e diretor da Tudo ao Mesmo Tempo Agora (TMTA), concorda: “o fomento sempre precisa melhorar, mas independente de receber dinheiro público ou privado, a produção se retroalimenta. O fomento já está no caminho, o mais difícil mesmo é a distribuição”. O projeto dele em parceria com um coletivo de arte local, o Criolina, acaba de ser selecionado para veiculação na Rádio Nacional de Brasília. O programa é um mapa musical que abrange diversas épocas e estilos, com foco na produção brasileira dos anos 1960 até a modernidade.
Renato conta que o mercado independente está aquecido e a produção nunca foi tão grande. Parte desse aumento deve-se às políticas de fomento regionais e ao fato de que as novas tecnologias facilitaram e baratearam a produção. Mas uma boa fatia do crescimento do setor de TV, especificamente, vem da implementação da lei nº 12.485/11, que dispõe sobre a comunicação audiovisual para TVs por assinatura. Ela determina uma parcela mínima de horas de programação, nacional e independente, assim como de canais com essas características, o que aumentou muito o espaço para exibição desse tipo de conteúdo. As metas foram reduzidas durante os dois primeiros anos de vigência da norma, prazo que acaba em setembro de 2013.
Altberg defende que, assim como aconteceu com a TV por assinatura, é preciso haver intervenção no sistema de TV aberta. “Nos Estados Unidos, o órgão de regulação deles estabeleceu cotas de exibição, o que possibilitou um mercado poderoso que se articula por si só. Lá, a lei criou o mercado, aqui é o contrário”. Para ele, a TV pública tem papel importante no sistema aberto principalmente porque o produtor independente no Brasil tem mais proximidade com esse meio, por causa de sua missão cultural e educativa.
Rodrigo Barata, um dos criadores do Criolina, comprova a tese. Ele conta que poderia ter emplacado o programa em uma emissora privada, mas que queria mesmo era vincular o projeto à imagem da EBC. Ele diz que sempre gostou da programação da Rádio Nacional e que os princípios da Empresa casavam com o projeto. “Nós pensamos esse programa porque queríamos trazer o ouvinte mais jovem para a Nacional. Acho que é uma obrigação nossa, como produtores culturais, fazer parte da construção da rádio pública”, diz.
Para ele, a grande vantagem de se trabalhar com a EBC é o fato de que ela distribui o conteúdo e também ajuda a produzi-lo. Eduardo Castro, porém, pontua que fomentar a produção independente não é, diretamente, um papel da comunicação pública. “Vamos comprar da produção independente aquilo que é necessário para compor uma grade diversa, sempre a partir das necessidades da programação, e não o contrário – o produtor chega com uma ideia e, somente pelo fato de sermos uma emissora pública, temos que executá-la”, defende. “Filmes e documentários para cinema, por exemplo, têm espaço garantido para exibição, mas nem sempre somos nós que vamos financiá-los”.
Para Ana Fleck, a indústria de comunicação é um mercado imperfeito, onde a livre competição é praticamente impossível, visto que a entrada de novos operadores é muito difícil devido aos custos de produção. É por isso que, em sua visão, são necessários mecanismos que possibilitem o estímulo desse tipo de conteúdo. “A criação da EBC teve esse papel principal. A TV Brasil é, hoje, a principal janela na televisão aberta para a produção independente”, afirma.
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Leia reportagem sobre produção regional aqui.
Veja dados sobre a produção independente na EBC aqui.
Leia essas e outras matérias na Revista do Conselho Curador
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Priscila Crispi é jornalista da Secretaria Executiva do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)