Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A militância e as responsabilidades do jornalismo

As alegações variam, mas os métodos e objetivos são os mesmos: intimidar os militantes da mídia alternativa que vêm documentando os protestos no Rio de Janeiro, cada vez mais concentrados na figura do governador do estado. Em junho, foi a prisão de um estudante de jornalismo que fotografava a primeira grande manifestação no Centro da cidade, sob a acusação de “formação de quadrilha”. Agora, foram dois representantes da Mídia Ninja, que na noite de segunda-feira (22/7) transmitiam os distúrbios em frente ao Palácio Guanabara, minutos após o fim da cerimônia de recepção ao papa Francisco, recém-chegado para a Jornada Mundial da Juventude. A acusação: incitação à violência.

Os dois foram logo soltos, mas o relato sobre o que os levou à prisão é indicador da ação de policiais infiltrados – que teriam, eles sim, incentivado o confronto – e estariam particularmente atentos à movimentação dos ninjas. Ao ser libertado, um dos jovens disse ter sido abordado por um sujeito supostamente interessado em entrevistá-lo: “Ele não me largava e não parava de falar no celular, me entregou a um PM e disse que tinha que ir correndo prender mais um”.

Em sua página no Facebook, o sociólogo Cid Benjamin, veterano das lutas políticas, descreveu o que viu desde o Largo do Machado, onde as pessoas começaram a se concentrar, e corroborou os indícios da atuação dos infiltrados.

À parte a violência física contra os manifestantes – um dos quais ferido numa perna, aparentemente por arma letal, mas que naquela noite não havia conseguido fazer o exame de corpo de delito – e certas táticas como o desligamento da iluminação da rua, a ação seletiva da polícia que mira a mídia alternativa demonstra que o que está em jogo é nada menos do que esse direito elementar em qualquer democracia: a liberdade de informar.

Atitude deliberada

Parece, de fato, uma deliberação do governador. Já na semana passada uma dupla de repórteres ninjas havia sido impedida de participar de duas coletivas no Palácio Guanabara, sede do governo estadual. A notícia da primeira proibição, aliás, foi publicada no site do Globo ainda na madrugada do dia 19 (“Nova mídia transmite protestos ao vivo, mas não pode entrar em coletivas de imprensa”), mas parece que contrariou interesses, pois foi logo retirada do ar e não saiu no jornal impresso. Feia e tola atitude do jornal, que, mais que uma violência, cometeu um erro: pois nos tempos atuais sempre é possível rastrear o que se publica, e a reportagem acabou veiculada no Facebook, junto com a denúncia de censura interna e a cumplicidade entre o jornal e o governador.

As prisões ocorridas agora, porém, estabeleceram um novo patamar para o cerceamento da liberdade de informar. Se associarmos esses fatos às acusações da PM, publicadas em suas redes sociais, de que a OAB estaria “atrapalhando” o trabalho da polícia – pois há sempre um grupo de advogados a postos para defender os detidos –, temos de fato um quadro preocupante e particularmente tenso na política estadual, incompatível com um regime democrático.

O repúdio à mídia corporativa

Entretanto, como já se tornou rotina nessas manifestações, a multidão que se aglomerou na frente da delegacia para onde foram levados os presos – foram dez no total – hostilizava ostensivamente os repórteres da mídia tradicional. O que não apenas representa uma inaceitável tentativa de silenciamento, mas é sobretudo uma incoerência: quem protesta exige que a mídia “fale a verdade”, mas ao mesmo tempo enxota os jornalistas aos gritos de “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura” e “mídia fascista, sensacionalista”.

Seria talvez ocioso ressaltar a banalização desse adjetivo, aplicado como pecha nas mais variadas circunstâncias, mas é forçoso reconhecer que o germe do fascismo está justamente em atitudes que cerceiam a liberdade.

Não é possível rejeitar em bloco o que se produz na chamada grande imprensa, por mais que façamos, como fazemos, críticas contundentes e bem fundamentadas a toda sorte de manipulação praticada nesses meios. Se não fosse por qualquer outro exemplo, o equívoco da rejeição automática ficaria claro para quem assistiu ao Jornal das Dez, da GloboNews, um dos que divulgaram a prisão dos ninjas e, mais adiante, transmitiria a entrevista de um deles, logo após a soltura. A própria página da Ninja no Facebook, por sinal, divulgou o link para essa notícia. Se odiamos a mídia corporativa, como é que aceitamos usá-la quando ela nos favorece?

Devagar com o andor

A cena de um dos ninjas erguido nos braços dos manifestantes em frente à delegacia é muito eloquente quanto à representatividade que esses jovens vêm conquistando. Mas, por mais que se reconheça o valor desse jornalismo de combate, é preciso moderar um pouco o entusiasmo e dedicar algum tempo à reflexão sobre o que vem sendo produzido nesses dias turbulentos. Há exemplos notáveis de reportagem, como o que ocorreu nesta mais recente manifestação, mas há falhas evidentes, e eventualmente até uma certa ingenuidade, como ocorreu na entrevista exclusiva com o prefeito do Rio, Eduardo Paes, na sexta-feira (19/7).

A repercussão dessa entrevista nas mídias sociais, aliás, apesar das reações rasteiras e irrefletidas que povoam a internet, rendeu questionamentos que ultrapassam o fato específico e alcançam os próprios métodos escolhidos para documentar a realidade, além da necessidade de qualificação para a consolidação de alternativas ao jornalismo tradicional.

Ao receber os ninjas, Paes deu o primeiro sinal de legitimação, por parte de uma autoridade, do trabalho realizado pelo grupo. Precisamente na contramão do que vem fazendo o governador.

A entrevista obteve algumas declarações interessantes, que foram exploradas por jornais do dia seguinte (por exemplo, O Dia e Folha de S.Paulo), nas quais o prefeito criticava indiretamente seu aliado político, e oportunamente procurava distanciar-se dele nesse momento em que ele é o alvo principal dos protestos no Rio. Mas evidenciou o despreparo dos entrevistadores, as perguntas mal formuladas e superpostas a outras, que facilitaram a atuação de quem está acostumado a esse jogo.

Logo ao final da longa entrevista, que se estendeu muito mais do que o previsto e ultrapassou a hora e meia, a Mídia Ninja publicou em sua página no Facebook uma avaliação autocrítica do seu desempenho:

“Depois do bloqueio à nossa equipe na coletiva de Sérgio Cabral, no começo da tarde chegou a nós a oferta de uma entrevista com o prefeito do Rio de Janeiro. Poucas horas antes de sua disponibilidade

“Duas opções apenas: topar ou não.

“Há muitas e cruciais diferenças entre cobrir a rua, a ação dos protestos e encarar um ensaboado governante, tête-à-tête, por mais de uma hora. Mas há uma semelhança que, para nós, determinou a decisão: sejam tropas de PMs violentos ou prefeitos de metrópoles chamando para o ringue, são desafios colocados diante de nós. 

“Negar, nesse caso, não seria cautela ou sabedoria. Nem covardia, diga-se. Mas simplesmente fugir de uma certeza clara em nossa rede…
É no processo, na experiência, na transparência, no teste real, ao vivo e sem cortes, que estamos avançando. Construindo nossa base de público e equipe. E pensando, com os muitos erros e acertos, em como entregar um jornalismo cada vez mais próximo da enorme confiança e expectativa que tanta gente deposita na Mídia Ninja.” (Os grifos são meus.)

Armadilhas

Por esse texto, fica claro que o convite partiu do prefeito. E aqui reside um equívoco fundamental da equipe: não perceber que a entrevista interessava à fonte. Nas discussões virtuais houve quem dissesse que isso não importava, mas esse tipo de afirmação só pode partir de quem desconhece algo elementar no jornalismo: uma coisa é ir atrás da notícia, outra é a notícia cair no nosso colo, ainda mais embrulhada em papel de presente. No longínquo tempo em que desconfiávamos das intenções das assessorias de imprensa, sabíamos distinguir uma coisa da outra. Hoje, quando as assessorias tomaram conta do processo, parece que não há diferença.
Mas, ainda que não tenha sido assim – houve comentários afirmando categoricamente que havia uma intenção prévia dos ninjas de entrevistá-lo –, seria fundamental tentar fugir da armadilha e preparar-se para um encontro em que um político experiente, embora ainda jovem, teria todas as condições de utilizar, como utilizou, essa oportunidade a seu favor.

Não foram poucos os que objetaram que muitos repórteres da imprensa tradicional tampouco demonstram qualificação para exercerem adequadamente o seu ofício. Aqui é preciso uma ressalva: certamente há casos de flagrante incompetência, mas não é possível ignorar a rotina que desestimula o espírito crítico. Quem malha em ferro frio tem seus limites: a tendência, após muitas tentativas fracassadas, é trabalhar na conta do chá e cumprir sua tarefa de acordo com o previsto, ainda que depois vá afogar as mágoas num botequim ou mesmo largar a profissão.

Apenas como exemplo: a recente notícia da permanência do tráfico de drogas no supostamente “pacificado” Complexo do Alemão, evidenciada pelo incêndio das dependências ocupadas pelo grupo AfroReggae, que teve de deixar o local, exigiria um questionamento das autoridades policiais. Num jornal que apoia as UPPs, a ausência desse questionamento poderia ser atribuída aos repórteres?

Qualificação

A falta de qualificação para encarar um político “ensaboado”, como disseram os ninjas, mas principalmente a falta de percepção sobre a quem serviria uma situação como essa, foi flagrante para quem assistiu à entrevista e acompanhou os comentários. Quem quer trabalhar com mídia tem de saber onde está pisando e como tudo isso funciona. Não é possível simplesmente dizer, apesar das belas intenções, que “é no processo, na experiência, no teste do real que se pode avançar”, como se não houvesse – com o perdão do pleonasmo – experiências anteriores. Essa autolegitimação do trabalho ignora a história do jornalismo, as inúmeras tentativas de se contrapor aos modelos dominantes em outras épocas e, principalmente, as táticas das assessorias. Daí que se tenham lançado voluntariosamente numa empreitada que acabou servindo a quem queriam criticar.

(A propósito, no mesmo dia O Globo publicava ótima entrevista com o prefeito sobre a questão do transporte, com perguntas muito incisivas e diretas. Isto deveria dizer algo sobre a “mídia vendida aos interesses comerciais”: a dicotomia não é tão elementar assim. Ver aqui.)

Foram pelo menos três ninjas à entrevista com Eduardo Paes, considerando a alternância das vozes – eles não se identificam, o que deve estar de acordo com sua forma de atuar. No mesmo momento começava um protesto na saída do túnel de acesso da Zona Sul à Barra da Tijuca, promovido por moradores da Rocinha que exigiam informações sobre o desaparecimento de um morador, capturado em casa por membros da “polícia pacificadora” instalada no local. Não teria sido melhor documentar essa manifestação, em vez de encarar um político sem o devido preparo?

“A manifestação foi convocada pela família, nós não soubemos de nada”, lamentou um dos ninjas, em declaração reproduzida num blog do Le Monde em 21/7 (ver aqui). Que não soubessem com antecedência, poderia ser; mas a informação circulou nas redes e na mídia tradicional: a manifestação se estendeu por várias horas, não seria difícil estar lá pelo menos para documentar uma parte do protesto.

Ver é compreender?

Algumas das críticas se dirigiram à própria opção dos ninjas por essa transmissão “em fluxo”, ao vivo e sem cortes, como se elas inaugurassem uma nova forma de se fazer jornalismo e, mais que isso, afirmassem a melhor forma de fazê-lo.

O mesmo artigo no blog do Le Monde enaltece a iniciativa do grupo, mas ao mesmo tempo coloca a questão crucial da necessidade de edição para podermos compreender o que está se passando.

Numa rara referência ao “cinéma vérité” dos anos 1960-70, por sua vez tributário das experiências pioneiras de Dziga Vertov no início do século passado – e sobre isso há tanta teoria que seria impossível resumir aqui –, o texto reproduz comentário do cineasta Eduardo Escorel, que elogia a “experiência inovadora” mas critica a “falta de edição, ou seja, a seleção, o ordenamento e a articulação que dão sentido a qualquer linguagem”. Por isso o espectador teria dificuldade de saber o que está acontecendo, já que recebe apenas fragmentos da realidade.

Esta é uma questão de fundo que remete a uma antiga observação de Ignacio Ramonet sobre o primado das imagens “ao vivo” do telejornalismo, já nos anos 1980, que nos levavam – e nos levam – a pensar que “ver é compreender”, e a dispensar o distanciamento necessário para qualquer reflexão.

Não se trata de desqualificar o ponto de vista alternativo oferecido pela Mídia Ninja, aliás fundamental para confrontar as imagens apresentadas pela mídia tradicional e para flagrar situações inesperadas pelo caminho, como já foi dito aqui (ver “A Mídia Ninja ataca outra vez”), mas de apontar a rejeição à edição – ou a essa opção pelo “fluxo”, independentemente das circunstâncias – como um equívoco que dificulta o estabelecimento de um quadro coerente para a compreensão dos acontecimentos. O “fluxo” é certamente fundamental em situações de elevada tensão, mas não pode ser tomado como padrão de atuação.

Mediação e ética

Mesmo nessas situações de tensão, muitas vezes falta reportagem. Apenas para citar o caso mais recente da depredação no Leblon, o jornalista Victor Ribeiro, que atualmente mora em Brasília, notou que o interesse dos ninjas, após a prisão de alguns manifestantes, se concentrava no humorista Rafucko.

“Mas lá dentro estavam pelo menos mais três personagens que mereciam ser ouvidos: uma turista espanhola, um rapaz que não tinha dinheiro para pagar a fiança – mas conseguiu – e um outro que, segundo os advogados, morava em Japeri e não conseguiu contatar a família.

“Até onde eu vi – por volta das três da manhã –, após a liberação de todos, a menina com a câmera pediu desculpas à espanhola, em nome do povo brasileiro, e foi comemorar a liberação do Rafucko. Não entrevistou ninguém, não perguntou o nome de ninguém – nem mesmo da espanhola e não informou o mais fundamental: quantas pessoas foram detidas.”

Victor reproduz a preocupação de base já citada acima:

“A cobertura era atraente para mim, como jornalista longe do ‘fato’, mas não sei se uma pessoa ‘comum’ teria paciência para acompanhar. Era tudo muito perdido. O que mais valeu foram as imagens.

“[Mas] Ficar no ar durante cinco, seis, sete horas transmitindo um protesto e não conseguir preencher as lacunas que a grande imprensa deixa abertas é algo difícil de entender. (…)

“A Mídia Ninja está lá, no meio da passeata, com trânsito livre entre os manifestantes, com acesso direto ao ‘outro lado’, mas não consegue mostrar com clareza esse outro lado. Uma pena. Resta torcer para que esse novo modelo de comunicação consiga se aprimorar rapidamente. E talvez não seja esse o novo modelo ideal. Talvez seja algo entre o que eles fazem e o que os grandes veículos fazem.”

Finalmente, é preciso considerar o comportamento dos repórteres. Uma coisa é assumir de que lado se está, outra é ignorar a necessidade de preservar o papel de mediador que todo jornalista precisa exercer, independentemente da ideologia. Para esclarecer: mediação não significa imparcialidade, nem mesmo equilíbrio – se pensarmos na metáfora do fiel da balança –, porque o jornalismo produzido numa sociedade desigual não pode forjar um equilíbrio inexistente; significa filtrar as informações para estabelecer um quadro compreensível da realidade. Mesmo o jornalismo explicitamente militante tem essas obrigações éticas, não pode simplesmente mergulhar nos acontecimentos e ignorar suas responsabilidades.

 

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)