A Rede Globo, que não carece de apresentações, acabou de terminar uma das suas obras ficcionais mais marcadamente ideológica dos últimos anos, a novela Duas Caras, do também já conhecido roteirista engajado com as causas da emissora, Aguinaldo Silva. A novela, que foi exibida no conhecido horário nobre oferecido às obras ficcionais, trabalhou arduamente contra lutas travadas pelos movimentos sociais, dentre eles o movimento negro e o movimento estudantil. Sem falar das doses diárias de discursos contra o setor público, os partidos e os políticos.
A novela prestou um verdadeiro desserviço à afirmação da raça no Brasil, pregando uma aversão clara à discussão de identidade negra e cultivou uma idéia de racismo às avessas, dos negros em relação aos brancos. Afinal, somos todos iguais e bonitos. Se não temos as mesmas oportunidades é porque, paciência, nem todo mundo se esforça como deveria. Como não poderia deixar de ser, a trama serviu para lançar e fazer publicidade de outro grande desserviço público, o livro do diretor-executivo de jornalismo da emissora, Ali Kamel, que tem como título (pasmem!) Não somos racistas.
O movimento estudantil foi ‘pautado’ pela novela, que tinha um ‘cunho social apurado’. Os estudantes, lógico, foram tratados como vândalos sem causa, com direito a desqualificação das universidades públicas, ‘que vivem em greve e não tem dinheiro para manter nem os laboratórios’ e uma apologia às universidades privadas.
Sem falar da imagem da favela idealizada pela Globo…
Ações diretas
Não satisfeita, ou melhor, muito satisfeita com o resultado que lhe rendeu exorbitantes pontos no Ibope, a Globo resolve ‘prestar favores’ a outro setor que vem sendo a duras penas desmascarado pelos movimentos sociais: as empresas de papel e celulose. Com a imagem ferida pelas ações de movimentos como os de luta pela terra, ambientalistas e indígenas que denunciam suas constantes violações, as empresas de celulose – Aracruz Celulose, Votorantim e Suzano –, segundo informações que circulam pela internet, seriam as patrocinadoras da nova novela das 8h, que entrou no ar no último dia 2/6, A Favorita.
A trama tem, dentre suas protagonistas, uma menina linda, loira, meiga e militante ambientalista. Esta linda mocinha, preocupada com o desmatamento no Brasil é nada mais nada menos que a grande herdeira de um império de celulose. Os donos da fábrica de celulose, seus avós, que sofrem com ações de sindicalistas exaltados, são também igualmente bonzinhos e humanos como a loira.
No primeiro capítulo já deu para perceber algumas movimentações de que a grande empresa de celulose não será nem de longe a vilã desta trama. Como não poderiam faltar, frases feitas contra os ‘militantes’ da ficção já foram proferidas. Coisas como ‘Até a minha neta de esquerda se deixa seduzir pelas maravilhas que o dinheiro pode comprar’, ditas pelo bom avô, que lógico, já superou a ‘doença infantil e ultrapassada’ de ser de esquerda, como o mesmo falou em outra passagem.
A trama tem espaço também para um político que veio ‘de baixo’, um negro, que tem um discurso enfático sobre as suas origens e contra os corruptos, mas que pelo visto está muito envolvido com as ‘benesses’ do poder (se alguém vestir a carapuça, paciência. É o papel do Quarto Poder fazer denúncias subliminares). Enfim, este foi só o primeiro capítulo de uma novela que ainda vai trabalhar muito no plano ideológico mais declarado e não somente no subliminar, como era mais comum em outras tramas.
Assim como as novelas, as propagandas institucionais da Globo também estão tomando claramente lado nos debates, como por exemplo a última campanha institucional à favor da ‘liberdade de expressão na publicidade’. Na verdade, a rede vem tomando o lado de quem paga a conta. Diante da ‘ameaça’ de uma população que não respondeu satisfatoriamente às campanhas contra Lula e, contrariando a emissora, reelegeu o presidente em 2006, são mesmo necessárias ações mais diretas e a adoção de um perfil mais apelativo das novelas. Até porque não se pode mais correr o risco de não voltar ao poder, literalmente falando.
Espaço público
Mais uma vez os grandes grupos de mídia no Brasil demonstram e reafirmam a fidelidade aos seus co-irmãos, o grande empresariado. O papel de Partido da Burguesia, Aparelho Privado de Hegemonia, como queiram chamar, segue se aperfeiçoando, assim como o próprio modelo de exploração, assim como o próprio capital.
O uso de uma concessão pública para fins meramente privados vai também sendo aperfeiçoado e passando à margem dos questionamentos públicos. Por que será que o fato de uma concessão pública ser usada para fazer campanha de opinião não é tomada como um escândalo? Com que direito a Globo – que, quando é do seu interesse, defende a transparência com o que é público – faz isso com a sua concessão que também é pública? Quem lhe deu mandato para dizer o que quer e não estabelecer contraposições no uso desta concessão?
Boa parte do poder público, seja o Executivo, o Legislativo e até por vezes o próprio Judiciário, tem medo de comprar a briga contra os meios de comunicação de massa. Temem o ostracismo midiático e serem tachados de responsáveis por trazer de volta à vida o fantasma da censura, ameaças seguidamente feitas a quem ousa questionar o poder irrestrito e a total desregulação na qual funciona os grandes meios. De forma bem elaborada, os barões da mídia e a Globo, em especial, conseguem assumir o posto de guardiões da liberdade e jogar a mordaça nas mãos de quem luta pelo fim dos monopólios, pela pluralidade.
Provavelmente gritarão ‘censura’ quando se depararem com críticas como estas, por exemplo. Desde já vamos deixar claro que não questionamos aqui a liberdade de criação. Esta deve ser preservada. Contudo, não podemos deixar passar impune o uso do espaço público para fazer uma campanha de opinião em que só um lado tem vez e voz: o lado dos patrocinadores, que, por sua vez, precisam ‘limpar’ suas imagens.
Sem distorções
Não foram poucos os teóricos que previram, acusaram e comprovaram que a mídia, principalmente os meios de comunicação de massa ligados a grandes grupos econômicos, a conglomerados de mídia, têm um papel a cumprir: o de porta-voz das classes dominantes, de legitimador do consumo e das ações do capital. Papel que cumprem, diga-se de passagem, muito bem.
Mesmo sem ter uma visão apocalíptica dos meios de comunicação, é impossível não perceber a força que estes veículos têm sobre boa parcela da sociedade e a legitimidade que tramas como estas podem trazer para suas causas, já que atuar no plano jornalístico apenas não dá mais conta de passar o recado e trazer o retorno esperado.
Será que só quando os militantes que combatem as transnacionais patrocinarem a novela é que eles poderão ter suas visões veiculadas sem distorções e estereótipos?
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Jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social