Os séculos e a experiência do homem a respeito da vida em sociedade foram reformulando o significado da cidadania. Entretanto, ela permanece em nossas memórias mais afáveis ou aguerridas como a potencialidade do ser humano para a realização da vida em comunidade. Para a filósofa de origem alemã Hannah Arendt, é a ação de cada um que caracteriza a vida comunitária. E essa ação nada mais é do que a capacidade de perceber que cada ato de cada indivíduo repercute sobre as outras pessoas, ganhando dimensão social. E isso tem muito a ver com jornalismo.
Na atividade cotidiana da imprensa, cada ação do trabalho de reportagem e de divulgação dos fatos é antecedida por uma ação que talvez seja um momento ímpar na rotina jornalística: a pauta. Talvez surjam daí as grandes reportagens e as grandes ideias que dão fala, voz e vez ao cidadão, fazendo com que o jornalismo cumpra de forma consciente o seu compromisso com a cidadania. Afinal, como dizia o pauteiro Luciano Moraes ao referir-se à rotina da imprensa, “no começo de tudo está a pauta”.
Embora, na prática, os profissionais das redações adotem conceitos de cidadania, há pouquíssima reflexão, nesses espaços, sobre o papel do jornalista e do jornalismo no contexto da vida social. Questões como o direito do leitor à informação completa, à forma de abordar e apresentar determinados temas e as múltiplas versões para os fatos aparecem com frequência nos discursos que defendem, nas redações, um fazer jornalístico ideal. Da mesma forma, os direitos humanos, principalmente quando se fala de acusações contra algum personagem da notícia, além de questões éticas na apuração da reportagem são sempre alvos de discussões entre jornalistas. Entretanto, apesar de fazer, no dia a dia, o que seria uma discussão sobre questões de cidadania, na maioria das grandes redações a prática não parte de uma consciência do jornalista sobre as relações sociais.
A pauta na formação do jornalista
A atividade cotidiana da imprensa acaba sendo desenvolvida de forma tão mecânica que editores e repórteres esquecem que o jornalista tem um papel social e que, ao cobrir ou publicar um fato, está no pleno exercício dessa função. Ademais, há casos em que a perversa lógica industrial que está por trás da produção das notícias nos jornais e sites atropela qualquer questão ética. Especialmente nas grandes redações, o que importa é colocar a notícia de pé e publicar. E aí, o jornalista que não esquece o compromisso da imprensa com a cidadania e com o cidadão precisa ter habilidade para garantir um mínimo de qualidade e estômago para suportar quando as coisas não andam como devem andar.
Um amálgama para ligar o que se pensa sobre o jornalismo e o que se faz no jornalismo talvez seja exatamente a pauta. É essa ação, é esse input que está “no começo de tudo” que vai determinar a sequência da atividade da reportagem. Afinal, é o momento em que se podem discutir as questões éticas e de cidadania de cada notícia e as implicações da cobertura para a vida dos cidadãos.
Para professores de jornalismo, levar o pensar e o fazer da pauta para a sala de aula pode ser uma questão ainda mais enriquecedora. Como apresentar aos alunos a importância da cidadania na produção das notícias? Assim como pode acontecer nas redações, um caminho coerente parece estar no momento de discussão da pauta. Por essa razão, ela precisa ser mais valorizada não apenas nas redações, mas também na própria formação do jornalista.
Um mundo mais democrático
Do ponto de vista do compromisso da imprensa com a cidadania, talvez o decisivo momento da pauta possa ser o fiel da balança entre o jornalismo que se julga estar fazendo e aquele que se deve fazer e entre o jornalismo que se julga ensinar e aquele que deve ser ensinado.
Com é possível refletir a partir da provocação de Arendt, a pauta constitui uma ação. Dessa forma, ela tem desdobramentos importantes na vida social, seja informando os cidadãos ou formando profissionais. E mais que isso: por alicerçar a atividade da imprensa, ela é fundamental no exercício de um jornalismo empenhado na construção de um mundo mais democrático e melhor.
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Antonio Rocha Filho e Enio Moraes Júnior são, respectivamente, jornalista, pós-graduado em Comunicação com o Mercado e professor do curso de Jornalismo da ESPM e jornalista, doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA / USP, professor do curso de Jornalismo da ESPM-SP e autor do livro Formação de Jornalistas: elementos para uma pedagogia de ensino do interesse público, da editora Annablume, 2013