Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A esfinge liberal, o presidente e a mídia

Os elogios de articulistas econômicos conservadores e os editoriais de apoio de setores expressivos da grande imprensa não deixam dúvida quanto à natureza da estratégia. À defesa intransigente da política econômica neoliberal do atual governo são ministrados, simultaneamente, em páginas nobres e minutos preciosos de telejornais, ataques sistemáticos aos setores que se empenham em preservar as bandeiras que levaram o bloco petista ao poder. No entanto, não é de jornais, revistas e emissoras de televisão que se deve cobrar coerência. Não são eles ‘que estão em disputa’. Permanecem, justiça seja feita, onde sempre estiveram. Com os mesmos aliados e interesses. Quem terá mudado o discurso?

Ao anunciar o valor do novo salário-mínimo de 260 reais, a vigorar a partir de 1º de maio, o governo não frustrou somente trabalhadores, suas entidades representativas, aposentados e as duas mais expressivas centrais sindicais. O que ficou distante não foi apenas a promessa de dobrar o valor do mínimo em quatro anos. Longínqua ficou a possibilidade de termos , finalmente, o mundo do trabalho como grandeza maior de um projeto de governo.

Talvez o ponto de inflexão mais relevante tenha sido o arrazoado para o irrisório reajuste. O ministro do Trabalho Ricardo Berzoini atribuiu a decisão ‘à lógica do ajuste fiscal’. Segundo o ministro do Planejamento Guido Mantega,’para cada real de reajuste o custo para o governo é de 160 milhões de reais’. E, como arremate categórico, concluiu afirmando que ‘a preocupação é manter o equilíbrio fiscal’. Ocioso destacar que o suposto equacionamento das contas públicas é, antes de tudo, exigência de organismos multilaterais. Sua função precípua é fazer caixa para o pagamento de juros. Mas não é para desnudar sofismas de integrantes do governo que escrevo este artigo.

Em ensaio intitulado ‘Governo Lula:o triunfo do neoliberalismo’, publicado na revista Margem Esquerda, o economista e professor da PUC-SP Carlos Eduardo Machado destaca que mais do que um conjunto específico de políticas econômicas, o neoliberalismo se apresenta como um paradigma flexível. Comporta realidades cambiais distintas, setores públicos de variados tamanhos, além de dosagens diferenciadas, conforme a realidade do país, de fiscalismo e política monetária. O que o define de fato, segundo o autor são as seguintes determinações:

1. Prioridade absoluta para os direitos do capital; 2. ocultamento das relações capital-trabalho e responsabilização do indivíduo frente ao capital; 3. despolitização da política econômica, tratada como técnica universal; 4. abertura de novos espaços para valorização do capital e, finalmente, culpabilidade dos países dependentes pela desordem financeira’.

Leitura obrigatória

Ora, qual desses itens não é contemplado nas editorias de economia e nos discursos e atos do que se convencionou chamar de ‘núcleo duro’ do governo?

Mas, fora de dúvida, sem o terceiro ponto dificilmente a articulação entre os demais se realizaria. A despolitização da economia é o toque nevrálgico da hegemonia neoliberal. Concebido como conjunto de práticas e idéias que se reforçam reciprocamente, o processo hegemônico só se efetiva se for capaz de universalizar interesses específicos. Só logra êxito se conseguir, para si, o estatuto de uma física social em que os axiomas estão a salvo de qualquer reparo crítico. E é por aí que desfilam premissas, promessas e metáforas. Tanto na Esplanada dos Ministérios quanto no discurso jornalístico, a grande ausente é a análise macroeconômica.

O pensamento único, que andava em descrédito, ganhou oxigênio de quem justamente chegou ao poder expressando seu esgotamento .Assim, autonomizada das relações concretas, a economia entra em órbita própria com indicadores que, tal como cabalas, exigem ritos iniciáticos. A análise apurada cede lugar à evidência do ‘risco-Brasil’. As oscilações dos C-bonds e os humores da Bovespa seguem atônitos os vaticínios da Merril Lynch. E se o mercado aparenta calma ou nervosismo, os derivativos não demonstram qualquer desconfiança quanto aos ‘fundamentos da economia’. O homem, esse indicador desnecessário, é visto como variável secundária, pouco interveniente, estatisticamente irrelevante. Afastado do ministério da Educação, Cristovam Buarque merece uma releitura. A necessidade de submeter a economia ao homem, ao invés de subordiná-lo aos ditames da lógica financista, faz do seu pequeno livro A desordem do progresso (Editora Paz e Terra) , 14 anos após o lançamento, leitura obrigatória pela atualidade do conteúdo.

‘Mão invisível’

Outro texto que não pode ser negligenciado é o artigo publicado por Renato Ortiz, em outubro do ano passado, no suplemento Mais!, da Folha de S.Paulo. Nele, o professor da Unicamp afirma que ‘dos mitos atuais, perenes, inquestionáveis, cotidianamente celebrados em escala global, um deles se denomina mercado. A ele nos referimos como entidade real, com vida própria, capaz inclusive de reações semi-humanas’. Descrevendo as funções de economistas no desvendamento da estrutura mítica que o mercado assume, Ortiz explica que as interpretações só serão críveis se expressas esotericamente. Ou seja, a credibilidade será filha da ininteligibilidade. Se alguém duvida, o trecho abaixo, extraído da edição de quarta-feira (29/4) de O Globo, é um exemplo sob medida de como a semântica neoliberal se traveste de noticiário.

‘A mistura explosiva de temor de uma alta nos juros americanos com novos ataques no Oriente Médio foi o combustível para o dia de maior nervosismo no mercado financeiro nas últimas duas semanas. A crescente aversão a risco dos investidores globais fez disparar as ordens de venda de títulos e ações de países emergentes. Segundo analistas, há investidores optando por manter o dinheiro em caixa até que o cenário fique mais claro. As bolsas, no Brasil e no mundo, também tiveram um dia de turbulências ontem.

‘Os bônus brasileiros, os mais negociados no mercado de dívida emergente, com 50% das operações, estavam entre os que mais sofreram: o C-Bond caiu 2,26%, negociado a 90,7% do valor de face. É o menor patamar desde 4 de setembro (90,85%). A derrocada dos papéis levou o risco-Brasil a subir 5,56%, para 665 pontos centesimais — o maior nível desde 3 de outubro de 2003 (667).’

A dificuldade de compreensão para o leitor comum não decorre de deficiência estilística. Trata-se de história expurgada de ação humana. Correlações frouxas para mostrar uma relação de causalidade que prescinde da intervenção política. Descolada da práxis humana, a economia se reproduz com uma lógica férrea. A ‘mão invisível do mercado’ desmaterializa qualquer contradição interna de sua própria dinâmica. Nesta, tudo é perfeição. A impureza vem de uma realidade que precisa ser positivada em índices. Eis a papel ideológico da cabala financeira. E nela se embalam jornalistas e autoridades econômicas. Pobres tópicos. Tristes trópicos.

Reafirmar o humanismo

Se é pela reação dos atores diretamente interessados que aquilatamos o conteúdo de uma medida governamental, a situação não poderia ser mais clara. O presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) comentou o reajuste do salário-mínimo dizendo que ‘ o presidente definiu um valor compatível com a realidade fiscal do país’. Para ele, ‘não se pode colocar a estabilidade em risco porque, quando isso acontece, quem paga o preço é o trabalhador’. A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro divulgou nota elogiando a fixação do salário-mínimo em 260 reais. ‘O Sistema Firjan considera esta decisão louvável, uma vez que é fundamental resistir-se ás pressões por aumentos de gastos sem respaldo orçamentário.’ Segundo analistas da Merril Lynch e do J.P. Morgan, é uma boa notícia para as contas públicas do país.

O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) declarou à rádio CBN que ‘é lamentável e deplorável que o governo Lula trabalhe com a mesma lógica do governo Fernando Henrique Cardoso’. O Sindicato Nacional dos Aposentados considerou o aumento ‘simplesmente ridículo’. O presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, declarou que o governo está sendo benevolente com os banqueiros e maldoso com os trabalhadores. ‘Dar 20 reais de aumento é uma vergonha’, acrescentou o líder sindical.

Em ação conjunta, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), a Social Democracia Sindical (SDS) e a Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT) divulgaram, no Dia do Trabalho, um manifesto pedindo ‘mais ousadia do governo para resolver antigos problemas econômicos e sociais do país’. A carta alude à precariedade das condições de trabalho, ao desemprego e à queda do rendimento médio do trabalhador.

Quando um governo de centro-esquerda anuncia um reajuste salarial e o mundo do capital festeja sob intensos protestos da classe trabalhadora, algo de sólido se desmanchou no ar. E não terá sido a primeira vez. O crescente aparelhamento do Partido dos Trabalhadores, a interdição do debate econômico e a cumplicidade da mídia conservadora sinalizam uma chegada perigosa ao ponto de não-retorno. Talvez estejamos a centímetros de uma derrapada fatal. Os movimentos sociais, mantendo o apoio ao governo, se ressentem da ausência de interlocução com setores oficiais. Os mesmos que se mostram tão solícitos às ponderações de organismos multilaterais de crédito.

Em pronunciamento à TV Câmara, o ministro Berzoini disse que ‘estamos buscando uma recuperação, ainda que modesta, mas não ia adiantar dar um aumento alto e depois gerar inflação’. Uma comparação das palavras do ministro com um trecho do editorial do Globo de sexta-feira (30/4) mostra a afinidade entre o discurso do governo e as prescrições do jornal da família Marinho.

‘Se o reajuste do mínimo viesse a comprometer as finanças públicas (e não se pode ignorar o fato de a Previdência continuar apresentando um déficit elevadíssimo e as folhas de pagamento da União, estados e municípios estarem nos limites máximos permitidos pela legislação), as autoridades monetárias dificilmente obteriam êxito em sua tarefa de conter a inflação sem recorrer a taxas de juros sufocantes.

‘Nesse caso, o reflexo do desequilíbrio nas contas governamentais seria um desempenho ainda mais frustrante da economia, agravando-se o problema do desemprego.

‘Ou seja, uma decisão irresponsável sobre o mínimo poderia prejudicar muito os trabalhadores, pela ampliação do desemprego, em vez de beneficiá-los. Às vésperas de eleições, políticos podem ser tentados a buscar maior apoio popular com o anúncio de um salário-mínimo que supere a capacidade de pagamento do setor público e da economia.

‘Felizmente, o presidente Lula mostrou ter consciência de que tem mais da metade do seu mandato pela frente e que um aumento demagógico agora se transformaria em uma bomba-relógio contra ele mesmo.’

Por mais que se deseje, a semelhança discursiva não reflete uma conversão das Organizações Globo a um contrato social em novos patamares. Se alguém mudou não foi o maior complexo midiático do país. Talvez a saída, se ainda houver, esteja numa pequena incursão à tragédia grega. Lula desafia a Esfinge-Capital e lhe responde categoricamente que a grandeza maior de qualquer projeto econômico é o homem. Por mais furiosos que se tornem os editoriais, a fera tebana terá se jogado do rochedo. Em qualquer caso, essa é a única saída para a armadilha neoliberal. Reafirmar o humanismo para além de qualquer outra categoria.

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Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro