Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os gregos já curtiam uma comunidade

Estudos que combinam ciências exatas e literatura apontam para o fato de que relacionamentos nas redes sociais se assemelham aos observados em mitos e obras clássicas. Analisados por brasileiros na Escócia, elos entre personagens da “Odisseia” se aproximam muito do padrão registrado entre pessoas na vida real.

Há dois anos, Franco Moretti, professor da Universidade Stanford, saudou o fato de que os métodos quantitativos estavam novamente em ascensão nos estudos literários. Dessa vez, devido às grandes bases de dados digitais, “big data”, vinham para ficar. Foi o que escreveu em artigo para a “New Left Review”, em que relatava os levantamentos feitos no Stanford Literary Lab sobre a rede de conexões em “Hamlet”.

O acadêmico, que é irmão do cineasta italiano Nanni Moretti, defendeu então que linguagem e estilo são apenas parte da questão literária: seu trabalho sobre a tragédia shakespeariana se apresentou como “o início de uma resposta” à pergunta sobre o enredo –se este poderia ou não, diferentemente do estilo, ser quantificado.

Desenhou um primeiro mapa, incipiente, dos “hubs” (entroncamentos, que são os protagonistas com os quais os outros integrantes de uma rede se relacionam mais) de “Hamlet”. Uma de suas revelações sobre o enredo da peça foi que Horácio, um personagem menor, é um ponto de confluência quase tão frequente quanto o rei Cláudio ou mesmo o príncipe Hamlet.

No artigo, intitulado “Teoria de Redes, Análise de Enredo”, Moretti tomou como ponto de partida as redes “small world”, identificadas pelo psicólogo americano Stanley Milgram em 1967. O “pequeno mundo” de Milgram se traduziu, popularmente, nos “Seis Graus de Separação” da peça de John Guare (1990)–a ideia de que apenas seis laços separam quaisquer duas pessoas no mundo.

Mesmo que o professor italiano de literatura comparada tenha admitido não ter a “inteligência matemática necessária” para lidar com a teoria de redes, ele estava certo ao identificar a ascensão dos métodos quantitativos, e das redes em especial, nos estudos literários mais recentes.

Passados dois anos, um grupo de físicos brasileiros veio se somar à atenção crescente de outras disciplinas –mais afeitas à matemática– pela abordagem quantitativa de textos literários e/ou míticos. No caso, trata-se do estudo “Análise de Comunidades numa Rede Social Mitológica”, mais precisamente, na “Odisseia”, de Homero, publicado há um mês na Escócia.

Milgram e Moretti são lembrados como referências distantes por Sandro Ely de Souza Pinto, professor da Universidade de Ponta Grossa, no Paraná, no momento fazendo pós-doutorado na universidade escocesa de Aberdeen. Ele encabeça o estudo, feito em colaboração com Murilo da Silva Baptista, do Instituto de Sistemas Complexos de Aberdeen, e com o mestrando Pedro Jeferson Miranda.

No trabalho sobre a “Odisseia”, diz Souza Pinto, “o que a gente mostra é que a rede parece ser real, tem indícios de que aquilo que Homero relatou é real”. O que o grupo fez foi analisar as relações sociais dos personagens e transformá-las numa rede, graficamente, que se revelou “muito parecida com as redes sociais reais, inclusive com as redes de Facebook”.

Comunidades

Entre as características que aproximam a “Odisseia” do mundo real estão ser “pequeno mundo”, como na constatação de Milgram, e “altamente repartida em comunidades”. Também ser “altamente hierarquizada”, fenômeno identificado nas redes por teóricos como o húngaro Albert-László Barabási, hoje professor de física na Universidade Northeastern, nos EUA, e referência central do estudo.

A exemplo do que aconteceu com Milgram e os seis graus de separação, Barabási vem se popularizando para além da teoria das redes pela expressão “os mais ricos ficam mais ricos, os mais pobres ficam mais pobres”, adaptada do Evangelho de Mateus. Em outras palavras, numa rede, os “hubs” com mais conexões sociais atraem novas conexões com mais facilidade, acentuando a hierarquização.

“Estudamos a Odisseia' profundamente e acabamos chegando à conclusão de que Homero talvez tenha sido o primeiro a entender o que é uma rede social”, diz Souza Pinto. “Para construir uma rede, você precisaria saber um pouco como é a distribuição das comunidades, dos círculos de amizade, que seguem certas leis matemáticas. E Homero observa tudo isso na construção de sua obra.”

Em números, o grupo identificou na “Odisseia” 342 personagens, ligados por 1.747 relações e formando 32 comunidades, sendo dez mais influentes, entre elas aquelas que se formam em torno de Odisseu e Menelau.

O estudo de Souza Pinto, Baptista e Miranda repercutiu no “Technology Review”, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA, que elogiou o “novo e interessante teste, que dá um importante insight' para a história de textos antigos”. E ao menos duas empresas de tecnologia, a americana Torux e a francesa Linkfluence, procuraram os brasileiros em busca de “parceria”.

Nem todos, no entanto, se mostram tão entusiasmados com as descobertas. O editor de tecnologia da revista britânica “The Economist”, Tom Standage, que lança em outubro um livro com a trajetória das redes sociais desde Roma até hoje, “Writing on the Wall”, afirmou à Folha já ter lido o estudo e diz preferir aguardar outros levantamentos, de outras obras.

“Eu gostaria de ver a análise repetida para outros trabalhos ficcionais, para ver se também parecem reais', antes de concluir se essa análise apoia a ideia de que os personagens na Odisseia' realmente existiram”, disse Standage. “Imagino se qualquer história plausível precisa de redes sociais que pareçam plausíveis. [A série de televisão] Game of Thrones', por exemplo.”

Sonetos

Os brasileiros não são os primeiros físicos a atuar em estudos literários quantitativos. No ano passado, Pádraig Mac Carron e Ralph Kenna, da Universidade de Coventry, na Inglaterra, publicaram trabalho concentrado no épico “Táin bo Cuailnge”, da Irlanda, também concluindo que ele tem relação com redes reais –e não seria tão “artificial” quanto a crítica literária costuma descrever.

O estudo de Mac Carron e Kenna, intitulado “Propriedades Universais de Redes Mitológicas”, foi outra referência para o trabalho de Souza Pinto, Baptista e Miranda, que citam ainda o livro “O Herói de Mil Faces”, de Joseph Campbell.

Além do épico irlandês, os dois pesquisadores da Universidade de Coventry estudaram paralelamente textos como a saga “Beowulf”, a peça de Shakespeare “Ricardo 3º” e o best-seller “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, avaliando que o primeiro seria mais realista, e os outros dois, não. Kenna chegou a observar que, nas telenovelas, “todo mundo tende a conhecer todo mundo”, algo “muito diferente de redes reais e sinal muito forte de artificialidade”.

Souza Pinto concorda com a noção, que ele vê validada, inclusive, pelas telenovelas brasileiras. “O que a gente observa é que, quanto mais erudito o autor, se você levanta a rede social da obra, mais perto da realidade ela está”, diz, acrescentando que prepara, com Baptista e Miranda, outros levantamentos, mas nada de analisar criações “literariamente pobres”.

O grupo estuda no momento as redes de conexões sociais de “O Fio da Navalha”, de Somerset Maugham, e “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. A primeira foi escolhida por ter “um personagem que viaja pelo mundo e conhece muitas pessoas e cada uma é diferente”. A segunda, por ser de “um erudito que criou várias realidades para poder escrever sua obra”.

Simultaneamente, o grupo iniciou um levantamento quantitativo, “mas não com rede social”, sobre os sonetos de Shakespeare, Camões e Bocage. “O que a gente quer fazer é o reconhecimento da autoria, dizer o que é ou não de Shakespeare, de Camões, através das características matemáticas das sílabas métricas.” E um terceiro estudo avalia seis traduções da “Divina Comédia”.

Sandro Ely de Souza Pinto diz que, a exemplo de Franco Moretti, ouve regularmente questionamentos a seus trabalhos. Ele acredita que a recepção no Brasil seja diferente do que na Europa e nos EUA devido à crescente interdisciplinaridade. “As pessoas cada vez mais aliam matemática com biologia, matemática com literatura, matemática com redes sociais.”

“Aqui no Reino Unido não ouço tanto, mas no Brasil as pessoas perguntam: Para que serve? Por que você está fazendo isso?'. É mais uma ferramenta da literatura, uma extensão da ferramenta que já existe na matemática e na física. Como sou matemático e físico, estou usando o que sei”. (Colaborou Marcelo Soares)

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Nelson de Sá é repórter da Folha de S.Paulo e coordenador, ao lado da repórter-fotográfica Lenise Pinheiro, do blog Cacilda, dedicado ao teatro. Pág. 3