O objetivo deste artigo foi analisar uma das matérias da revista Veja, edição de número 2329 (10/7/2013), para averiguar se a publicação praticou algo diferente do que se entende como jornalismo.
Como todo campo de atividade humana, o jornalismo tem suas regras. E quando essas regras são ignoradas ou quebradas não há mais jornalismo, há “outra coisa”. Estudiosos da teoria do jornalismo (Traquina, Wolton, Gonzaga Motta, Marcondes Filho, entre outros) e aqueles que praticam a profissão reconhecem que o jornalismo tem alguns pilares. Entre eles, os mais importantes são: a adoção de princípios éticos, apuração dos fatos, uso de fontes credenciadas, busca do máximo de isenção, busca da verdade, manifestação dos citados na matéria, respeito à privacidade e intimidade das pessoas. O professor Nelson Traquina diz que ser jornalista implica a partilha de um ethos que tem sido afirmado há mais de 150 anos. Esse ethos do jornalismo corresponde a uma “constelação de valores”, como liberdade, credibilidade, associação com a verdade, objetividade e, antes de tudo, a ética.
É com este prólogo que se inicia a crítica a matéria intitulada “Vozes de um mundo distante – as propostas e projetos bizarros que dominam a pauta do Congresso e afastam ainda mais o planeta Brasília do Brasil” (Veja nº 2329, págs. 60-61), assinada por Robson Bonin. A matéria faz parte de um conjunto de textos com chamada de capa que vai da página 54 à 61. O que se analisa agora é a referida matéria nas suas páginas internas (disponível em http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx).
Resposta sutil
O primeiro aspecto a se notar é uma clara intenção em desqualificar o Congresso Nacional; é mostrar que os congressistas vivem em um planeta distante, ou numa “dimensão quântica”, como diz a Veja. O texto debocha e tenta ridicularizar os congressistas e dá a entender que eles só agem quando pressionados. Uma pressão se manifesta – diz Veja na sua linguagem populesca – como o “bafo quente das ruas”.
Expressões do gênero, que caberiam mais a um panfleto do que a um texto jornalístico, são usadas insistentemente na matéria. São muitos adjetivos e metáforas colocadas para (des)qualificar os parlamentares. Além das expressões, “dimensão quântica” e “bafo quente das ruas”, os parlamentares são xingados de “mandarins do Planalto”, “nefelibatas” (quem vive no mundo da lua) e de “suas excelências”; os impostos brasileiros são “escandinavos”, o serviço público é de “padrão subsaariano”; há uma “combinação esdrúxula e autoritária”. Também é preciso desconfiar das “minorias barulhentas e de interesses inconfessáveis”. Acrescentem-se ainda ironias como associar mamadeiras com armas de destruição em massa a propósito de uma relação que a Veja constrói na matéria com uma imaginária modelo da Vitória’s Secret. [Vitória’s Secret é uma grife de lingerie – como isso foi parar no texto ninguém sabe.]
Por fim, como se tratasse de um editorial, manifesto partidário ou panfleto, o texto finaliza com uma proposta política: “Já passa da hora de tirar o mundo oficial do reino da fantasia em que vive”.
A ironia, claro, pode fazer parte do jornalismo. Feita com inteligência e na medida certa, pode abrilhantar o texto. Mas quando o repórter se esquece do foco e mergulha no deboche, a ironia se reduz à banalização ou, no senso comum, à “avacalhação”. Em outras palavras: o jornalismo não precisa ser ridículo para denunciar o ridículo. Quando ele faz isso, deixa de ser jornalismo, deixa de ser imprensa, para se tornar panfleto, piada, autoflagelação. E foi o que fez a Veja nessa matéria. No caso, a revista cometeu três erros primários do jornalismo: 1) abusou dos adjetivos e das metáforas; 2) abusou da ironia e do deboche; 3) propôs – ela – uma “solução para o problema”.
Do ponto de vista do texto jornalístico, portanto, a matéria não tem valor algum. Se um aluno de Jornalismo apresentasse este texto em sala de aula ele seria duramente criticado pelo professor. Nenhuma Faculdade de Comunicação séria do país consideraria isso um texto jornalístico.
O que se questiona não é a pauta. É fato que há parlamentares que propõem “coisas malucas” ou “bizarras”. A imprensa já tratou disso em diversas ocasiões. Aliás, é papel da imprensa fazer isso – fiscalizar, denunciar, criticar. Mas a Veja deixou de fazer jornalismo quando descartou a objetividade e a seriedade, apelando para um monte de adjetivos e metáforas cuja intenção não era informar, mas ridicularizar, debochar, desqualificar o parlamento.
E o pior é que fez isso com recortes que tentam ocultar posicionamentos políticos da publicação. Por exemplo, a matéria diz que, enquanto não ocorriam as “formidáveis” manifestações de rua, “a prioridade de deputados e senadores era atender a demandas de minorias barulhentas com suas pautas esquisitas e sem a mínima importância”. Como Veja chegou a essa conclusão? E o que seriam essas minorias barulhentas com pautas sem importância? Como não há objetividade nessa afirmação, como ela não aponta nada nem ninguém (o que deveria fazer se se tratasse de jornalismo), cabe ao leitor “adivinhar” quem seriam essas minorias. Mas a tarefa não é difícil.
Veja dá a resposta. Ocorre ela é sutil e não está no texto, mas na foto que ilustra a matéria. Ela mostra, em primeiro plano, o deputado Jean Willys (PSol-RJ), de olhos arregalados e, aparentemente, brigando com alguém (com o leitor, claro). Dá para entender o sutil recado da Veja: o deputado Jean Willys, “o barulhento” na foto, é o representante dessas minorias, isto é, do movimento LGBT. Na mesma foto Jean Willys faz contraponto com deputado pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) que, sereno e tranquilo, aparece em segundo plano. O presidente da Comissão de Direitos Humanos, como se sabe, é adversário do movimento LGBT.
Validade científica
Agora se entende porque essa foto ilustra uma matéria que trata de forma genérica da ação parlamentar: Veja tinha um posicionamento, mas não iria manifestá-lo por escrito. Tanto que a foto nem legenda tem. Talvez para não desagradar o leitor gay da revista ou para não criar um caso com o movimento LGBT. Mas, ao se fazer a leitura semiótica (Roland Barthes) da imagem, revelam-se três significados dados pela publicação: 1) responde à indagação do leitor sobre quem são essas “minorias barulhentas” (o movimento LGBT); 2) Jean Willys (barulhento, radical) é o contrário do deputado e pastor Marcos Feliciano (sereno, tranquilo, consciente); 3) a Veja está com o pastor, e, por extensão, contra o movimento LGBT.
A matéria aqui analisada teria como pauta central as propostas legislativas em tramitação no Congresso. O repórter escreve sobre o assunto usando mais adjetivos: “um exemplo acabado desses devaneios […] é um projeto que pretende criminalizar a psicofobia”. E já conclui que a iniciativa é “uma maluquice completa”. Só então tenta explicar ao leitor o que é fobia e suas variações, citando até verbete do dicionário Houaiss. E firma uma segunda conclusão mais radical ainda: “qualquer ser humano racional entende que não se pode, portanto, punir as fobias com o Código Penal”.
Ocorre que tal projeto não existe. O repórter não fez o que todo “foca” aprende no primeiro dia de redação: apurar a matéria. Se pesquisasse nos sites da Câmara e do Senado certamente acharia propostas esquisitas, bizarras. Mas, ao que parece, optou por fazer uma matéria bizarra contra isso e aquilo. Enfim, não é jornalismo.
O que existe hoje é uma proposta de alteração do Código Penal (PLS 236/12), na forma de emenda, em tramitação no Senado. A emenda estabelece que as pessoas portadoras de distúrbios como esquizofrenia, bipolaridade, dislexia, ansiedade, não sejam discriminadas por portarem tais transtornos mentais. Esse tipo de discriminação é denominada de psicofobia. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) defende uma legislação que criminalize a psicofobia; ou seja, que seja punido quem discriminar o outro por ter transtorno mental. Essa questão, naturalmente, está sendo discutida pelos psiquiatras (ver aqui). Tratá-la como “maluquice completa” é, no mínimo, é uma agressão aos psiquiatras e a entidade que lhes representa. É mais um deboche da Veja que agride o jornalismo e o bom senso.
É função da imprensa e do jornalismo fiscalizar e criticar o trabalho dos parlamentares. E se pode criticar os congressistas por vários motivos. Mas quando eles apresentam uma proposta defendida por uma entidade de especialistas em saúde, os parlamentares deveriam ser elogiados por isso. Entidades da sociedade civil costumam defender seus interesses no Congresso Nacional – isso é legal, justo e democrático. Neste caso, porém, a ABP está atuando em defesa dos direitos difusos da sociedade, fazendo o necessário debate sobre um tema atual e apresentando, por meio de parlamentares, propostas que consideram corretas.
Quando senadores reconhecem e apoiam o tema em função de sua validade científica e social, cumprem – e bem – o papel de legisladores. Se é assim, por que a Veja critica essa proposta? Aliás, baseada no quê, ou em quem, Veja se arroga o direito de questionar e, mais que isso, ridicularizar a proposta? Qual a autoridade que Veja possui para questionar a proposta? A revista defende a psicofobia? E será que a Veja também defende a homofobia?
Panfletos raivosos
E já que tratamos de imagens, cumpre observar a capa dessa edição da Veja. Ela mostra, em desenho (muito ruim, por sinal), um extraterrestre vestido de terno (simbolizando um parlamentar, mas de outro planeta) diante de um Congresso Nacional transmutado em duas naves espaciais substituindo a Câmara e o Senado. É uma capa panfletária – é mais deboche e ironia.
Nas páginas internas a matéria de capa vai da página 54 até a página 61. Mas atenção: seu objetivo, além de desqualificar o Congresso Nacional, é bater no PT e no governo Dilma Rousseff. A pauta é a proposta de plebiscito lançada pelo governo. Como veio do governo, é preciso esculachar, debochar. E a Veja apresenta o seu “plebiscito” – uma espécie de questionário com os temas que, na sua opinião, deveriam ser tratados pelo governo; uma paródia ao plebiscito proposto por Dilma, mais um deboche desta edição. Nota-se que as perguntas já têm respostas! É somente uma brincadeira. Mas com uma enorme carga de virulência e arrogância. Por exemplo, nesse falso plebiscito Veja propõe que o Brasil rompa relações com Cuba. Motivo? Porque é uma nação comunista.
Embora a revista abuse do deboche, da ironia e das brincadeiras, uma análise de discurso (Teun Van Dijk) demonstra que ela tem ódio, raiva, e é intolerante contra tudo que pareça ideologicamente à esquerda, Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff, parlamentares de esquerda (ou algo parecido) e Parlamento. Tantos adjetivos depreciativos apresentados nas matérias mostra que Veja não tolera mais determinadas posições e, por isso, nem lhes dá espaço em suas páginas, optando por desqualificar o interlocutor. São opiniões raivosas que expressam uma intolerância visceral contra aqueles que têm opinião diversa da publicação.
Sim, a fotografia fala mais que mil palavras. E esse potencial de comunicação é usado por todos os veículos, para o bem ou para o mal. Os elementos da fotografia definem o simbólico diante do leitor: enquadramento, cor, textura, plano e contraplano, posição da câmera, recorte, profundidade; olhar e postura do fotografado, acompanhantes; roupas e cores das roupas; cabelos, mãos… Ao escolher o que colocar na publicação, muitas vezes o editor faz isso com base numa posição ideológica da revista. E editar imagens é uma linha editorial.
Por exemplo, por que todas as fotos de Dilma Rousseff na Veja são “feias”, negativas para sua imagem? Talvez porque, usando um pouco de ironia, ela seja “feia” e nunca “está bem” na foto… Será que nas centenas de fotos não há uma ou duas em que ela apareça melhor? Se isso acontece, teremos um fenômeno da fotografia mundial – eis uma pessoa que nunca está “bem na foto”. Aliás, seria preciso averiguar se o fenômeno se repete nas edições anteriores. Em contrapartida, algumas pessoas sempre estão “bem na foto”. É o caso do papa Francisco – é evidente que a Veja “lhe quer bem”. De qualquer modo, o caso merece uma boa pesquisa.
Diante do que foi visto, à luz dos teóricos da comunicação, e no que dizem os bons profissionais da área, pode-se concluir que a revista Veja não faz jornalismo. A imprensa tem a função de fiscalizar e fazer a crítica aos poderes, mas a Veja optou por substituir o jornalismo por textos que se assemelham a panfletos impregnados de uma raiva contra determinados setores. Nenhum jornalismo é isento e imparcial, mas nenhum jornalismo, para ser chamado como tal, pode ser intolerante contra quem assume posições diferentes das suas. Desqualificar e ridicularizar o adversário com relação às suas ideias cabe mais a uma discussão de boteco do que a um jornalismo que se preze.
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Dioclécio Luz é jornalista e radialista, mestre em comunicação pela UnB e autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias