A web se consolida como um importante canal de atuação profissional para jornalistas que escrevem sobre ciência. Blogs e sites especializados têm a vantagem de recuperar um espaço editorial perdido na mídia impressa ou na TV – fenômeno comum a vários países – e de ampliar as oportunidades de emprego, além de possibilitar aporte financeiro sem comprometer a independência editorial ou o bom jornalismo.
Trata-se, no entanto, de uma plataforma que exige habilidades técnicas multimídia, criatividade para produzir conteúdo e uma nova lógica de relacionamento com o público.
As novas oportunidades e as características dessa nova maneira de divulgar ciência foram temas de diversas sessões de debate na 8ª Conferência Mundial de Jornalistas Científicos, realizada entre 24 e 28 de junho na Universidade de Helsinque, na Finlândia.
Ficou claro no encontro que a antiga imagem dos blogueiros como escritores amadores está desaparecendo por causa do surgimento de redes de blogs profissionais. A constatação é de que, em nenhuma área, isso é mais evidente do que na redação científica, onde blogueiros figuram entre os melhores comunicadores de ciência no mundo.
Isso se explica pelo número significativo de profissionais experientes e com reconhecida reputação e credibilidade, cujos blogs sobre ciência e áreas correlacionadas computam grandes audiências e alto nível de interação – alguns deles financiados por meio de doações.
A conferência de Helsinque apresentou exemplos de experiências de blogueiros do tipo “watchdog” (blogs de vigilância), que monitoram informações e histórias publicadas pela imprensa, pela publicidade ou por instituições públicas e privadas.
É o caso do Science-ish, hospedado no site da revista Maclean’s, única revista semanal de circulação nacional no Canadá. Trata-se de um blog sobre saúde baseada em evidências, que verifica semanalmente as notícias mais atuais sobre o tema e aponta declarações públicas com incorreções, assim como celebra casos de declarações públicas bem informadas.
Para fazer suas análises, Julia Belluz, jornalista responsável pelo blog, utiliza um banco de dados sobre pesquisas em saúde, gerenciado pelo McMaster Health Forum, e a Biblioteca Cochrane, um banco de fontes de evidência de pesquisa em saúde para tomada de decisão em cuidados com saúde, que tem sua versão brasileira hospedada na Biblioteca Virtual em Saúde (Bireme).
Julia Belluz foi moderadora da sessão intitulada “Misuse them and abuse them: fighting for facts in Science”, que contou com a participação de Deborah Blum, autora de cinco livros sobre ficção científica, ganhadora do prêmio Pulitzer, membro do Knight Science Journalism, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), no qual é responsável pelo website Tracker, que analisa criticamente notícias sobre jornalismo, além de escrever para diversos veículos.
A sessão também teve a participação de Gary Schwitzer, responsável pelo website HealthNewsReview, que avalia mensagens sobre saúde no jornalismo, publicidade, marketing e relações públicas que podem influenciar os consumidores. O HealthNewsReview.org é mantido pela Informed Medical Decisions Foundation, que, segundo Schwitzer, não tem influência sobre a operação editorial do projeto.
Iniciativa semelhante é o ProPublica, organização sem fins lucrativos e isenta de impostos, que conta com recursos da Sandler Foundation e de outras doações, criada por Paul Steiger, ex-editor-chefe do The Wall Street Journal. Agora ela é liderada por Stephen Engelberg, ex-editor investigativo do The New York Times, e por Richard Tofel, ex-editor assistente do The Wall Street Journal.
Com sede em Manhattan, o ProPublica possui uma redação com cerca de 40 jornalistas dedicados a reportagens investigativas sobre histórias com grande potencial de impacto. Os repórteres descobrem práticas enganosas cometidas por órgãos do governo, empresas, hospitais, sindicatos, universidades e mídia e estimulam uma mudança positiva.
Considerando que, em tempos econômicos difíceis, muitas redações tradicionais têm deixado o jornalismo investigativo de lado, o ProPublica oferece, gratuitamente, as histórias que apura às publicações tradicionais. Em 2012 foram publicadas mais de 80 dessas histórias por 25 parceiros. O site recebeu o Prêmio Pulitzer em 2011 e 2010 nas categorias Reportagem Nacional e Jornalismo Investigativo, respectivamente. Em 2013, ficou com o prêmio Peabody, concedido pelo Henry W. Grady College of Journalism and Mass Communication, da University of Georgia.
Como ser um jornalista de ciência “matador”
O ProPublica foi representado pela jornalista científica e designer Lena Groeger na sessão intitulada “The ‘killer’ Science journalists of the future”, algo como “Os excelentes jornalistas de ciência do futuro”.
O debate foi organizado por Bora Zivkovic, médico veterinário que edita blogs da Scientific American e é co-fundador e diretor do ScienceOnline, comunidade virtual que reúne especialistas que conduzem ou comunicam ciência, ou seja, pesquisadores, escritores de ciência, artistas, programadores e educadores. O objetivo do blog é melhorar a comunicação científica no seio da comunidade científica, com o público e com os políticos. O ScienceOnline também é uma organização sem fins lucrativos que recebe doações dedutíveis do imposto de renda.
Durante o ano que antecedeu a realização da conferência de Helsinque, Zivkovic estimulou sua rede virtual de produtores e comunicadores de ciência com as seguintes perguntas: “A especialização é necessária?”, “O que um novo jornalista científico deve fazer para ser notado?”, “Como o jornalista científico deve lidar com o Breaking News? [as notícias quentes]”, “Quais são as características de um bom jornalista de ciência no futuro?”.
Com base em suas impressões pessoais e em comentários de seus leitores, Zivkovic acha que a grande diferença em ser um novo jornalista tentando entrar em campo hoje, em relação ao passado, é que é preciso ter muitas habilidades diferentes ou, pelo menos, ser capaz de realizar projetos em muitos meios diferentes.
Como cresce o número de freelancers e de pessoas sem contato regular com outros colegas, há uma tendência de formação de redes de pessoas interessadas em comunicação de ciência – e não apenas em jornalismo –, o que favorece uma atuação mais colaborativa e a formação de parcerias.
Ainda assim, para que os iniciantes descubram suas paixões, o editor sugere que se experimentem novas formas de explicar ciência, seja por meio de um conto de fadas, de ficção científica, de poema ou de história em quadrinhos. Fotografia, charge ou infográficos podem ajudar a contar histórias.
Vale ainda tentar fazer um vídeo ou animação de vez em quando, gravar um podcast, tentar aprender códigos de internet, até descobrir com quais recursos se lida melhor. É preciso identificar que tema é mais excitante para si e escrever sobre isso, até encontrar o próprio nicho e, quem sabe, tornar-se um especialista (ou pelo menos um especialista temporário) sobre o assunto.
Hiperlink como moeda de confiança
Zivkovic reforça a constatação de que, embora as mídias tradicionais remunerem melhor, esses meios de transmissão de sentido único estão perdendo público, já que as novas gerações utilizam essencialmente a web em busca de informação, educação, entretenimento e interação. Confiança e reputação são as moedas no novo ecossistema da comunicação.
No mundo on-line, a moeda de confiança é o hiperlink. Da mesma forma que a comunidade científica cita seus pares em artigos científicos, o texto on-line deve fazer ligações com todos os documentos e referências citadas. Cada citação feita sem um link é automaticamente uma bandeira vermelha para o leitor moderno. Cada elo que falta é perda de confiança. Mesmo que a maioria dos leitores não tenha tempo para abrir todos os links, eles são a prova de que o autor fez a diligência de pesquisar dados e fontes relevantes.
Para lidar com a característica que mais assombra os relutantes em usar as novas mídias – por ser um sistema aberto, tem feedback instantâneo e às vezes devastador –, o editor recomenda lidar com as críticas com o máximo de transparência, humildade na admissão de erros e combate a informações incorretas, se for o caso. A resposta ao feedback, envolvendo leitores no processo de esclarecimento ou de aprendizagem, é a melhor forma de ganhar confiança e reputação.
Zivkovic diz ainda que a autopromoção não é pecado, mas para fazer isso de forma eficaz é preciso construir a própria comunidade de amigos, mobilizar a comunidade de pessoas que já confiam no autor e fazer parte de círculos que atuam como replicadores.
Para o debate, Zivkovic convidou quatro profissionais de web dos Estados Unidos: a moderadora da mesa, Rose Eveleth, produtora, designer, animadora e escritora com diversos projetos para a web que podem ser vistos em http://www.roseveleth.com/; Kathleen Raven, do Science Tomorrow; Erin Podolak, da equipe de comunicação do Dona-Farber Cancer Institute e que alimenta o blog Science Decoded; além de Lena Groeger, do ProPublica.
A repercussão dessa sessão no Twitter pode ser conferida pela hashtag #sci4hels. As participantes são típicas nativas digitais de uma geração detentora de grande habilidade e facilidade com ferramentas tecnológicas; mesmo quando as ferramentas mais adequadas não existem, esse perfil de profissional cria soluções e se diverte com o que faz.
Em outra sessão, o poder dos blogs foi abordado a partir das experiências de jornalistas como Betsy Mason, da Wired.com, revista e site sobre inovação em diversas áreas; Alok Jha, correspondente do The Guardian que também escreve para o blog Science Weekly; Ed Young, premiado escritor britânico sobre ciência que escreve para o blog Not Exactly Rocket Science, hospedado no National Geographic Phenomena; e Bora Zivkovic.
O bom jornalismo investigativo
Alinhada aos objetivos do encontro, a European Union of Science Journalists’ Associations (EUSJA) promoveu o workshop “Blood infusion for staggering science journalism”, defendendo a boa prática da profissão, independentemente da mídia ou da plataforma de atuação.
“É importante cavar mais fundo os dados do material recebido, farejar contradições, cultivar relações com a comunidade de pesquisa, não confiar em única fonte, ter sempre uma segunda opinião, ouvir atentamente o que diz e como diz a fonte, ser paciente e se preparar para meses de investigação e estar pronto para o conflito, se acusar pessoas em sua versão”, afirmou Fabio Turone, membro do Conselho da EUSJA, durante o workshop.
Outro convidado, o jornalista holandês Hans van Maanen, recomendou cuidado com outra fonte de desinformação: as estatísticas falsas ou enganosas. Ele instruiu o público a pedir à fonte que mostre os números absolutos – e nunca aceitar a porcentagem. “Um aumento de 10% pode parecer muito, mas se for apenas três pessoas, esqueça, é apenas um ruído”, disse Maanen, que oferece um curso on-line para os interessados em entender melhor as estatísticas.
Esse e outros cursos sobre jornalismo científico são oferecidos pela World Federation of Science Journalists (WFSJ) em parceria com o SciDev.Net no website http://www.wfsj.org/course/index-e.html.
A Conferência realizada na Finlândia reuniu mais de 800 jornalistas científicos de cerca de 80 países. O próximo encontro será em 2015, em Seul, na Coreia do Sul.
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Jussara Mangini, para a Agência Fapesp, de Helsinque