Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O nascimento da imprensa brasileira

A imprensa brasileira completa em junho 200 anos. Efemérides à parte, o livro Imprensa e poder na corte joanina, da historiadora e jornalista Juliana Gesuelli Meirelles, é leitura obrigatória para a compreensão dos primórdios do jornalismo no país. Não por acaso, a dissertação que originou a obra conquistou no ano passado o primeiro lugar no Prêmio Dom João VI de Pesquisa. A pesquisa, intitulada ‘A Gazeta do Rio de Janeiro e o impacto na circulação de idéias no Império luso-brasileiro (1808-1821)’, foi desenvolvida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), sob orientação da professora Leila Mezan Algranti.

‘Quis compreender a estruturação, o enraizamento, o nascimento e as implicações da imprensa no Brasil, assim como a sua dimensão política nas transformações do espaço público’, afirma Juliana. A pesquisadora transcendeu em muito a proposta inicial. No livro, Juliana, a partir – mas não apenas – do jornal Gazeta do Rio de Janeiro, primeira folha impressa no país [1808-1821], mostra como a corte joanina imprimiu sua marca, promovendo transformações profundas na sociedade brasileira. Para tanto, a historiadora, por meio de um impressionante trabalho de investigação, não deixou que sua pesquisa ficasse circunscrita a limites geográficos e ao período retratado – Juliana navegou nos dois lados do Atlântico e foi buscar as raízes das mutações que deixaram seu legado na constituição da sociedade brasileira.

A seguir, sua entrevista.

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Como transcorreu seu trabalho de prospecção do material usado na pesquisa?

Juliana Gesuelli Meirelles – Minha pesquisa começou em 2003. De início, pesquisei a coleção microfilmada da Gazeta do Rio de Janeiro presente no Arquivo Edgard Leuenroth [AEL] do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp [IFCH]. Neste arquivo, também tive contato com outros jornais do período joanino que muito me auxiliaram a enxergar uma nova dimensão do nascimento da imprensa no Brasil.

Em 2004, fui contemplada com uma bolsa da Cátedra Jaime Cortesão (FFLCH-USP) que me permitiu pesquisar em Portugal, durante dois meses – entre maio e julho de 2005. Nesse período, encontrei fontes documentais importantíssimas. Elas me deram uma nova dimensão da importância da Gazeta do Rio Janeiro, agora sob uma perspectiva transatlântica, uma vez que o jornal circulava em Portugal e era editado pelos jornais portugueses entre os anos de 1808 e 1821. Enfrentei muitas dificuldades na análise do material, sobretudo diante das duas coleções da Gazeta na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca D’ajuda, que tinham marcas e escritos a bico de pena de leitores ou colecionadores. Tive que estudar muito teoria da história, ter muito método e sensibilidade para chegar a algumas conclusões.

Em que medida o livro amplia o espectro da investigação feita durante sua dissertação?

J.G.M. Na medida em que o livro chega ao grande público, abre um novo campo de discussão sobre o nascimento da imprensa no Brasil e coloca a Gazeta do Rio no centro deste debate, sobretudo entre os jornalistas e historiadores. O fato de a imprensa brasileira completar 200 anos, em 2008, também é fundamental. O fato de a Gazeta ser oficial não a diminui como marco inaugural do jornalismo brasileiro. Ao contrário, mostra como a produção e circulação de uma folha governamental podem extrapolar questões restritas ao interesse político do governo joanino.

Você preocupou-se em situar historicamente a importância da imprensa no período anterior à sua implantação no Brasil, inclusive mencionando suas ramificações em outros países da Europa – além, é obvio, de Portugal – no século 18. Em que medida a imprensa colaborou no âmbito dos hábitos e costumes e dos debates políticos – e, em última instância, para a história?

J.G.M. A introdução da imprensa transforma, de forma decisiva, a relação da sociedade com o poder instituído. Mesmo censurada nas informações políticas. Pelos avisos da Gazeta, é possível conhecer muitos dos novos hábitos e costumes que surgiam, da alimentação à venda de escravos. Vemos, a partir daí, como as pessoas publicavam coisas de seus interesses no jornal e o utilizavam como meio privilegiado de interação coletiva em sociedade. O cotidiano da população passava por transformações profundas.

Quanto aos debates políticos, foi possível visualizar fatos de suma importância para a monarquia portuguesa nas páginas da Gazeta, mesmo que sob uma ótica parcial. Além disso, há a discussão desses eventos políticos no espaço público. É possível fazer a crítica dos fatos e, ao final do período, com o nascimento de outros jornais, ter visões diferentes sobre a mesma questão coletiva.

Todas essas mudanças já apontam o quanto a dimensão da imprensa foi fundamental nas transformações históricas que começam no período joanino e aparecem com mais força no período que antecedeu a Independência, quando a imprensa já se torna palco de um debate público sobre os rumos da nação.

A Impressão Régia já nasceu sob censura prévia. Quais foram as conseqüências disso para as publicações que viriam em seguida? E para a formação da imprensa no Brasil?

J.G.M. O ranço da censura é muito forte no Brasil. Essa tradição aparece na vida política e cultural do país, invariavelmente. Logo após a suspensão da censura prévia, vem a explosão de escritos, debates, nascimentos de jornais e circulação de obras antes proibidas. No entanto, logo no Primeiro Reinado as perseguições a jornalistas, entre os quais Luis Augusto May ou Frei Caneca, acontecem de forma violenta… Ou seja, durante as primeiras quatro décadas do século XIX, a prática da liberdade de imprensa estava sendo construída numa relação muito tensa com o poder institucionalizado. 

Hoje, depois de tantas experiências traumáticas de censura, sobretudo no período Vargas e na ditadura militar, vemos uma imprensa atuante, investigativa e opinativa. Mas, em muitos momentos, ainda subserviente ao poder… Sempre haverá uma tensão muito forte entre o poder da imprensa e as suas conseqüências políticas. O atual governo não lida de forma amistosa com essa relação, e nossos jornalistas lutam por uma imprensa mais crítica… Porém, há ainda um longo caminho a trilhar. Talvez, devamos aprofundar ou mudar os olhares e as óticas pelas quais enxergamos a realidade política. Pode ser que ainda falte ao cidadão brasileiro uma compreensão mais ampla entre o limite e as diferenças que permeiam o universo público e privado. 

Em que medida os ‘produtos’ derivados da Impressão Régia introduziram novos paradigmas em diferentes áreas do conhecimento?

J.G.M. Foi possível conhecer diversas temáticas em profundidade a partir da prática da leitura de livros impressos que passaram a circular em várias áreas, entre as quais Teologia, História, Economia e Literatura. As pessoas podiam conhecer obras há muito proibidas e refletir sobre as múltiplas implicações para a realidade cotidiana da corte ou imperial, do império português. 

Quais eram as diferenças mais visíveis entre a Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Braziliense?

J.G.M. O Correio era um jornal de crítica ao governo e à política joanina. Em primeiro lugar, defendia a liberdade de imprensa, e também era favorável a uma monarquia constitucional aos moldes ingleses. Para mim, essas são diferenças centrais.

Como era a relação da Gazeta com o público leitor? Qual foi sua importância na promoção do diálogo com Portugal?

J.G.M. As relações eram muito complexas. Em primeiro lugar, o discurso era escrito sob um perspectiva transatlântica, o que pensa o diálogo com o público pelas duas margens do oceano. Isto é, o público são os súditos do império…. E o jornal dialoga com esse público ao tentar passar uma imagem mitificada de D. João como o salvador e protetor do Novo e do Velho Mundo, sobretudo por meio do discurso da imprensa. Mesmo distante dos portugueses, tem o objetivo de não mostrar abandono, pelo contrário. É a figura do monarca zeloso para com os seus vassalos que era sempre exaltada.

Nesse contexto, o jornal teve algum papel na transição política que se ensaiava à época?

J.G.M. Teve, sim. Durante todo o período joanino, a Gazeta foi uma fonte de informação importantíssima sobre os ‘feitos’ do monarca e da realeza. Para além disso, a lógica e as controvérsias discursivas da Gazeta contribuem e em todos os ‘tempos’ políticos que, de formas diferentes, repensavam a estrutura do Império Português. Das guerras napoleônicas ao diálogo travado com os revolucionários do Porto, ao final do período, em 1820, ou mesmo – e principalmente – as conseqüências adversas decorrentes desse processo, em 1821, com a volta de D. João para Lisboa.

Em que medida, na sua opinião, a Gazeta refletia a sociedade da época? É possível ‘reconstituí-la’ por meio de sua leitura?

J.G.M. Não entendo a Gazeta como um reflexo da sociedade da época, mas sim como um espaço indispensável para que os sujeitos históricos fossem agentes da sua própria história e do seu próprio tempo, fossem eles os produtores ou os leitores do jornal. Nessa relação tão complexa é que enxergamos vieses da sociedade joanina pelas páginas do jornal.

Como historiadora, que avaliação você faz da atuação da corte joanina?

J.G.M. Para além do absolutismo e da censura, que foram fatores políticos nocivos à constituição de uma sociedade mais livre e plural, houve o nascimento de espaços de sociabilidade e cultura, com a valorização do ensino, da educação e da leitura, que muito transformaram e dignificaram a cultura e a sociedade brasileira.

Na condição de jornalista, como você vê a imprensa brasileira hoje?

J.G.M. Um tanto sensacionalista e ainda elitista. Mas caminhando para um espaço de maior democratização seja quanto à informação de qualidade, seja com espaço para um debate de idéias mais equilibrado. Os blogs fazem esse papel e o leitor conquista cada vez mais seu espaço.

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Da Redação do Jornal da Unicamp