Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A formação do preconceito

A mente humana produz defesa sempre que situações de ameaça são identificadas. Ao longo da vida a memória do ser humano vai acumulando experiências e fazendo registro de pessoas, coisas, situações e lugares que geram prazer como também produzem dor. Esse mecanismo é responsável pelo surgimento de conceitos prévios que alertam a pessoa sobre situações de ameaça ou satisfação quando as mesmas são associadas a fatos anteriormente vivenciados. É uma constatação da neurociência, por exemplo, que antes mesmo de uma pessoa ter a consciência de estar diante de uma cobra o cérebro humano, milésimo de segundo antes, começa a agir para a fuga, e isso por que temos interiorizado, seja pela cultura ou pelo instinto, que tal réptil é uma ameaça à vida.

Mas se a mente produz mecanismos de defesa – e, diga-se de passagem, boa parte de modo inconsciente – uma pergunta-chave então é: até que ponto é possível o domínio consciente dessas informações? Como é possível afirmar que esses ‘mecanismos’ de defesa estão totalmente sob controle do agente, já que essas ‘armas’ são também conceituais, gerando influências comportamentais perante situações e pessoas? Como e até que ponto é possível afirmar que tais defesas não geram situações de conflito nos relacionamentos sociais. A mídia produz esses mecanismos?

Falso mecanismo

A neurociência antecipa: os mecanismos de defesa também trazem em seu bojo a mesma capacidade para gerar conceitos prévios sobre pessoas que desconhecemos. Freud já anunciava que mecanismos da mente humana eram responsáveis pela rejeição que algumas pessoas tinham por outras, pelo simples fato de uma leve semelhança física trazer à tona lembranças ruins, resultantes de experiências anteriores com terceiros, simplesmente resultantes de traços característicos que lembravam ocasiões passadas.

É aí que surge uma situação problemática: os preconceitos, como o racial, podem ser também resultantes dessa elaboração neuronal. É quando surge a indagação: por que às vezes experiências pretéritas tomam o sentido do preconceito racial? Qual a relação entre ‘mecanismo de defesa’ – da mente humana – e as formações estereotipadas que levam pessoas a odiar seus semelhantes ou a evitá-los simplesmente por causa da cor da pele, talvez num encontro inesperado pela rua na calada da noite? O que é mais intrigante é: o que faz com que a cor da pele de alguém esteja presente no mecanismo de defesa de outra que a depara durante a noite?

Um dica: por que será que há um nexo entre ‘mil e uma utilidades’ e uma determinada marca de esponja de aço? Por que será que boa parte da sociedade acredita veladamente que um chinês tem mais chance de ser um contrabandista que um boliviano? Por que será que em muitos meios informais de investigação da polícia americana há uma desconfiança branca de que existe um nexo entre ‘ser muçulmano’ e ‘ser um terrorista’? Por que será que Jean Charles foi baleado no metrô de Londres? Resposta: falso mecanismo de defesa produzido por características acentuadas equivocadamente pelos meios de comunicação visual.

Sistema de cotas

É claro que o preconceito racial existe antes do nascimento da imagem televisiva, cinematográfica e jornalística, mas ninguém pode negar que esses meios geram falsos mecanismos de defesas que pregam peça na racionalidade da mente humana, seja na forma como, por exemplo, a mídia apresenta os heróis nos filmes; como, quantitativamente, a relação entre pobres e negros é associada equivocadamente em cenas de prisão em flagrante. Isso implica vários fatores – principalmente a generalização e a confusão feita na relação que termina por forçar a versão preconceituosa de que o negro é mais violento que os demais, sem considerar que é a pobreza e a falta de escolaridade uma das verdadeiras causas da violência e não a cor da pele.

É hora de rever a relação entre ‘mecanismo de defesa’ e ‘preconceito racial’ em relação ao negro já presente provavelmente nas subliminares músicas ensinadas às crianças, como a que diz que ‘o boi malvado que pega criancinhas é da cara preta’.

Infelizmente, a mesma indústria cultural que faz muitas pessoas acreditarem que ‘todo chinês é contrabandista’, que ‘todo muçulmano é terrorista’, é a mesma que faz associações forjadas, indexando veladamente uma determinada cor de pele ao bandido, ao assaltante, ao chefe do morro, enfim, à violência urbana. Por que será que o sistema de cotas não é imposto às agências bancárias, às agências de modelos, e tantos outros lugares construídos no imaginário da mente ocidental como próprios de peles claras?

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Pesquisador e professor do curso de jornalismo da Universidade Católica de Goiás/Alfa/UNIP.