As revelações feitas por um ex-agente de inteligência norte-americano, Edward Snowden, geraram no Brasil surpresa e indignação e despertaram o governo para a necessidade de aprovação do Marco Civil da Internet. A “surpresa” é pouco justificável. Afinal, não é de hoje que os meios de telecomunicação são “acompanhados” sob os mais diversos pretextos, entre eles a prevenção de ações terroristas. Claro que, com a internet e o uso extensivo da “nuvem”, tanto na guarda de dados pessoais e correspondências como no próprio processamento da informação, aumenta a possibilidade de “acompanhamento”, especialmente quando há a colaboração de empresas do setor ou quando se exploram facilidades eventualmente embutidas em roteadores e equipamentos de comutação críticos – as chamadas backdoors.
Já a indignação procede totalmente, e cabe aos governos buscar a melhor forma de proteger seus cidadãos contra o acesso indevido a seus dados pessoais e sua navegação, expostos à bisbilhotice internacional. Enquanto isso, o projeto do Marco Civil, originário do trabalho pioneiro do Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil – que em 2009 havia aprovado e publicado os Princípios para a governança e uso da internet, um decálogo elogiado pela comunidade internacional –, está há anos no Congresso, à espera de aprovação.
Apesar de o projeto ter sido discutido durante anos, obtendo o consenso dos usuários, há quem adie sua análise em plenário sob o argumento de que existe “algo a consertar ou melhorar que ajudaria sua aprovação final”. Enquanto outras leis criminalizando ações na rede passam olimpicamente, o Marco Civil marca passo. Mesmo que os que propõem “acréscimos” ou “melhorias” em seu texto o façam de boa-fé, esquecem-se eles de que o Marco Civil define princípios, não dispondo sobre modelos econômicos ou sobre tarifas e qualidade da internet. Os pilares do projeto do Marco Civil são a proteção à privacidade, a manutenção da neutralidade da rede e a correta responsabilização da cadeia de atores, eximindo a rede em si dos malfeitos que nela acontecem.
Sem deformações
É uma falácia atribuir ao Marco Civil o condão de impedir a “bisbilhotice” na rede. É o equivalente a imaginar que uma lei sobre roubos fará com que eles inexistam. Ora, o Marco Civil serve essencialmente para balizar os direitos e deveres dos partícipes da rede e identificar ações potencialmente danosas. O Marco não impedirá que os espiões espionem, mas deixará mais claro quais direitos foram violados, além de garantir, ao cidadão, a liberdade de expressão e, à iniciativa privada, a possibilidade de competir no cenário de rede sem estar exposta a riscos de interpretação legal que a coloquem como corresponsável por eventuais abusos dos usuários finais da internet.
O segundo ponto diz respeito ao próprio CGI, cuja estrutura multissetorial e caráter não regulatório sempre mereceram reconhecimento como paradigma de uma gestão adequada da rede. O Brasil marcou, com a criação do CGI, em 1995, seu protagonismo na proposição de um modelo de governança da internet. A gestão multissetorial (multistakeholder) é vista como a única adequada a um ambiente tão diverso, rico e aberto à participação de todos como é a internet.
As ações do CGI para aumentar a segurança do tráfego de dados e reunir estatísticas sobre a tecnologia de informação tornaram-se “termômetro” no ambiente da internet e na difícil tarefa de tentar entender o que as redes sociais representam – sua forma de atuação que, cada vez mais, surpreende, estimula, engaja, potencializa e, eventualmente, atemoriza.
A proteção desse ambiente e de seus habitantes se torna cada vez mais importante. A privacidade do indivíduo, a neutralidade da internet e a responsabilização adequada da cadeia produtiva, que não iniba a criatividade e o empreendedorismo, precisam ser consolidadas. O Marco Civil é a forma de consolidar os princípios que ordenam a internet.
Urge, portanto, a aprovação do Marco Civil, sem deformações casuísticas e não pertinentes a uma carta de princípios.