Ir na contramão do senso comum e das normas estabelecidas é característica de todo pensamento crítico. Mas quando se trata de avaliar iniciativas que, justamente, atuam ou pelo menos se declaram à contracorrente do “sistema”, parece que o sentido crítico se dilui, temeroso de ser apontado como cúmplice desse mesmo sistema que deseja combater. É como se estivéssemos numa conjuntura de polarização ideológica simplificadora, que suspeitasse de todo comportamento diferente da adesão incondicional a uma causa – o que é, evidentemente, o túmulo da crítica.
Parece que é o que vem acontecendo na atual polêmica em torno da Mídia Ninja e do coletivo Fora do Eixo, sobretudo a partir da entrevista de seus respectivos líderes ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na semana passada (ver aqui). Nas redes sociais, o desempenho de ambos foi imediatamente comemorado – eles teriam “jantado” experientes jornalistas, muitos dos quais insistiam em indagar sobre a origem dos recursos que mantinham aquelas atividades, aparentemente interessados em identificar alguma falcatrua –, mas logo que começaram a surgir graves denúncias contra o grupo a situação se alterou, e houve mesmo quem falasse na “armadilha” que representava participar de um programa como aquele, num canal comandado pelo tucanato.
Entre professores e intelectuais críticos da mídia – fora, naturalmente, aqueles já identificados com esse projeto –, a tendência foi de manifestar apoio ao grupo, desqualificando os questionamentos e relevando o que consideravam equívocos próprios da natureza “complexa” de uma atividade que ousava contestar o sistema em seus fundamentos, ao propor a “desmonetarização” das relações de produção em plena vigência do capitalismo.
Questionando os fundamentos
Ocorre que muitas das críticas são contundentes demais para ficarem sem resposta. Algumas, em tom de desabafo, apareceram imediatamente após o Roda Viva, a partir de pessoas que tiveram diferentes experiências com o grupo – a primeira delas, ou a de maior repercussão, feita pela cineasta Beatriz Seigner, que denuncia calotes, apropriação indevida de recursos, exploração do trabalho de jovens idealistas, desprezo pela formação e informação cultural etc. Outras expunham a decepção com a quebra da promessa de horizontalidade na tomada de decisões, o que apenas revela a extrema ingenuidade de quem ignora a permanência dos mecanismos de exercício de poder, dissimulados e adaptados ao novo mundo das redes.
Outras ainda, mais antigas, questionavam os fundamentos dessa proposta alternativa e agora voltaram à tona. Entre estas, duas sobressaem: a do coletivo Passa Palavra, em junho de 2011, e a do jornalista José Arbex Jr., publicada originalmente na revista Caros Amigos, em agosto do mesmo ano. Em fevereiro de 2013, o Passa Palavra publicaria outro texto analítico em que aponta o Fora do Eixo como parte de um “novo empresariado cultural”, que explora o trabalho alheio na base de um discurso sedutor sobre um suposto novo estágio do capitalismo, marcado por “disputas narrativas” e pela “ressignificação” do sentido da militância política. É como se essa nova militância fosse uma espécie de “servidão voluntária” tardia, justificada em nome dos mais nobres ideais libertários.
Entre a “comunicação” e o “trabalho”
Não é um discurso novo. Aliás, é o que leva a confrontar, grosso modo, duas concepções sobre o capitalismo contemporâneo no amplo espectro do pensamento de esquerda, e que podem ser sintetizadas na oposição entre os paradigmas da produção e da comunicação: o primeiro considera a permanência da luta de classes, que tem como centro a questão do trabalho; o outro a despreza e sugere que a categoria de “exploração” não se aplicaria mais às sociedades avançadas.
É uma longa discussão, que não cabe neste espaço, mas é importante ressaltar que esse paradigma da “comunicação” – e, por extensão, da “cultura”, desvinculada do “trabalho” – faz muito sucesso em vários setores da academia, notadamente nas escolas de Comunicação. “Comunicação” e “cultura” são conceitos que apelam a sensibilidades, subjetividades, afetos – em suma, são tudo de bom e sugerem liberdade, enquanto “trabalho” é algo associado a sacrifício. Não é agradável pensar que tudo o que produzimos e consumimos custa trabalho. Melhor ignorar. Embora seja difícil pensar em “ressignificar” a situação muito objetiva de quem está desprovido de seus meios de subsistência.
Além dessa questão de fundo, impressiona a facilidade de adesão à ideia de que o Fora do Eixo estaria inaugurando relações de convívio comunitário. É no mínimo uma injustiça para com o ideário hippie e da contracultura dos anos 1960-70. Isso se não quisermos invocar exemplos que remontam a utopias do século 19.
As ilusões da transmissão “em fluxo”
Como já comentei neste Observatório, o jornalismo produzido pela Mídia Ninja tampouco é algo novo, embora tenha sobressaído na cobertura das manifestações de junho e julho ao recuperar o melhor da tradição da reportagem de rua, testemunhando e transmitindo ao vivo os conflitos e a violência durante as manifestações. Nesse sentido, atuou como fundamental elemento de denúncia contra a truculência policial. E, ao assumir claramente um lado, contestou na prática a hipocrisia da imparcialidade como valor para o jornalismo, assumido formalmente – mas apenas formalmente – pelas grandes empresas de comunicação, e há muito tempo contestada em estudos acadêmicos.
No entanto, o entusiasmo com que se vem acolhendo essa iniciativa tende a levar a uma falsa dicotomia entre a “velha” mídia e esse admirável mundo novo de múltiplos celulares de última geração a documentar e disseminar em “tempo real” o turbilhão de acontecimentos. Como se o jornalismo se resumisse ao testemunho e ao imediato.
Pelo contrário: jornalismo exige apuração – que obviamente vai muito além do testemunho – e edição. Editar é fazer escolhas criteriosas: exige distanciamento para avaliar e dar algum sentido ao que se passa. Editar exige bem mais que o ímpeto e a coragem de se misturar à multidão: exige qualificação. E dá trabalho. Muito trabalho.
A defesa de uma transmissão sem edições, “no fluxo”, se baseia na ilusão de que não haveria filtros, quando o primeiro filtro, elementar, está no próprio lugar de onde se documenta qualquer cena. Valeria a pena, aliás, recordar exemplos em que a mídia tradicional atuou nesse fluxo contínuo, como o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, a prisão do casal Nardoni, em São Paulo, e o sequestro e morte da jovem Eloá Pimentel, em Santo André: em todos esses casos multiplicaram-se as críticas à espetacularização dos acontecimentos.
Não caberia a mesma crítica agora, especialmente quando certos grupos mascarados produzem imagens impactantes em suas performances pirotécnicas? Ou a crítica varia conforme a natureza dos acontecimentos? O que significa, afinal, esse movimento de trazer o espectador para “dentro” da cena?
A ética e o mundo das redes
Há quem diga, entretanto, que ações como a dos Ninjas – apesar do significado do “J” do acrônimo – não devem ser reivindicadas como jornalismo (ver aqui), pois são “narrativas” que transbordam o exercício da reportagem. Talvez o problema, aí, esteja no que se classifica como reportagem: talvez se esteja lidando com cânones estreitos demais para enquadrar essa atividade. Além disso, é preciso considerar o status que protege, ou deveria proteger, o trabalho jornalístico: não é casual o grito de “imprensa!” diante da violência policial ou da ameaça de prisão durante as manifestações.
O problema é que, quando se pretende fazer jornalismo, é preciso respeitar determinados princípios éticos. E aqui reside talvez a principal questão com a qual nos confrontamos nesses tempos de “nova mídia”. Há tempos, tratei desse tema em artigo acadêmico reproduzido neste Observatório (ver “Encruzilhadas da ética em tempos de ‘nova mídia’“): de fato, vivemos num contexto em que a imprensa perdeu a exclusividade no relato dos acontecimentos que podem ter influência pública. Isso costuma ser comemorado por todos os que, com razão, condenam a deturpação das informações pelos grandes conglomerados de mídia, mas o outro lado dessa história é preocupante: se “todos” podem divulgar “tudo” através da tecnologia digital, perdemos os parâmetros de referencialidade que a imprensa anteriormente prometia.
De fato, hoje, qualquer informação – verdadeira ou falsa, fidedigna ou não – pode circular amplamente e produzir efeitos, às vezes deletérios. A nova realidade das redes não cancela os velhos mecanismos de formação de opinião, que terão tanto mais sucesso quanto menor for a capacidade de discernimento de quem se expõe ao que circula no espaço virtual. São questões que não podemos esquecer quando tentamos compreender o mundo contemporâneo e vislumbrar para onde caminhamos.
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Em Tempo: Na noite de segunda-feira (12/8), outra manifestação em frente ao Palácio Guanabara acabou em violência. A Mídia Ninja transmitiu em quatro links. “Caralho, galera! Vai dar merda, hein? Bomba de gás, spray de pimenta! Caralho, galera!”, era como um dos rapazes transmitia.
A galera, naturalmente, só podia intuir o motivo de tudo aquilo.
Dentro do palácio, após audiência com o vice-governador, um grupo de professores da rede estadual, em greve desde quinta-feira (8/8), resolveu ficar. Acabou expulso pelos policiais. Um dos ninjas estava lá. “Tá meio tenso, mas tá tudo bem. (…) Estão jogando pedra aqui dentro, aparentemente…”
No meio da gritaria, sobressai a voz de uma mulher, mais exaltada. “Tá empurrando por que, cara? Não empurra! Larga ela! A violência começa de vocês! Covarde! Co-var-de!”, e logo a seguir o coro: “Fas-cis-ta! Fas-cis-ta”. E o ninja: “Estão batendo aqui nos professores, aqui no Palácio da Guanabara (…), Mídia Ninja apanhando, policiais batendo no Mídia Ninja, estão empurrando a gente aqui, Mídia Ninja apanhando, sendo expulsa…”
O trecho do vídeo foi divulgado no Facebook, mas as imagens não permitem ver nada além de um tumulto, que não se entende por que começou (ver aqui).
É assim, entre exclamações de espanto e protestos, que se constrói a narrativa “independente”. Afinal, o que se passa? Tumulto, agressões, violência – mas por quê?
Explicar o que acontece parece dispensável. Basta mostrar e excitar-se, para excitar e provocar uma indignação difusa em quem vê.
Pensando bem, quem diz que as narrativas da Mídia Ninja não são jornalismo tem razão. Não são mesmo. Aquele “J” do acrônimo, o que faz ali?
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)