O escritor norte-americano James Ellroy participou da Flip há dois anos e descobriu o Brasil. “Os norte-americanos não têm a menor ideia do Brasil, para muitos é sinônimo de esquadrão da morte, salsa, mulheres nuas fazendo sexo promíscuo”, disse. Ellroy vestiu uma camisa florida e desde então sonha vir morar em Paraty.
O país que as pessoas fantasiam e retêm na cabeça é traçado pelas representações na imprensa, na literatura, nas artes plásticas e no cinema – e a última safra de todo esse apanhado tinha uma fonte só: a violência.
Semana passada quando Vendo ou Alugofoi lançado, esta semana com a estreia de Flores Rarase a promessa de entrar em cartaz o documentário Sorria, Você Está na Barra, um vento ameaça varrer a onda marcada por Tropa de Eliteque se espalhou pelas favelas e marcou uma geração de cineastas e o olhar do público. Como se o Brasil e a cidade que melhor nos representa lá fora, o Rio de Janeiro, só existissem com a metralhadora pendurada num canto e soldados emoldurando a paisagem. Dava até saudade daqueles morros românticos de filmes em P&B do começo do século passado, quando meninos soltavam pipas e balões enquanto a mãe punha água no feijão e o pai bebia cachaça e tocava violão do lado de fora do barraco. Vi uma cópia antiga durante o Festival Brasiliana em Copenhagen e tive a certeza de que se tratava de outro Brasil – os dinamarqueses também. Ambos exploram a miséria e a realidade, mas os lados do prisma não batem.
Os estrangeiros sempre nos lançaram olhares exóticos, às vezes grotescos, às vezes generosos, não raro encantados, mas tudo dependia do ponto de vista, das leituras, jornais, sites, filmes que escolhiam, ou do tempo em que passavam aqui.
Desenho animado
As crônicas de Roberto Arlt reunidas no livro Aguafuertes Cariocas,lançado recentemente, retratam os 58 dias que o escritor argentino passou no Rio em 1930, que começaram com o encantamento com a paisagem, a amabilidade e a gente decente que encontrou na então capital da República. Mas deságuam na mais profunda decepção. “Dois milhões de habitantes e nenhum jardim?” Antes de voltar correndo para Buenos Aires, deixou suas impressões sobre as cariocas na “princesinha do mar”, Copacabana: “É inútil. A mulher para agradar tem que estar vestida”.
Outro argentino, Bioy Casares, que aceitou o convite do Congresso do Pen Club no Rio e passou oito dias no Brasil, em 1960, na esperança de encontrar a carioca que conheceu num navio, tinha olhares até sensuais para esses trópicos. Mas muito divergentes. Conviveu com Graham Greene e Alberto Moravia, reconheceu que aqui “japoneses, árabes e judeus são recebidos de braços abertos”, repudiou Brasília, “operação de um déspota indiferente aos sentimentos de milhares de pessoas que formaram sua vida no Rio”, irritou-se com o Congresso, “um pseudoparlamento que se arrasta no vazio” e, ao visitar o Museu de Arte Moderna de São Paulo, sapecou: “O mundo oficial brasileiro está amarrado de pés e mãos a tudo de cubista, concreto ou abstrato que lhe proponha suas bobajadas”. E, o que foi pior para a memória de sua passagem por aqui, não encontrou a tal carioca do navio. Na volta a Buenos Aires havia um bilhete na sua mesa de trabalho. “Velho verde, corruptor de menores, não me terás. Ophélia”. Pelo menos foi o que publicou em Unos Dias em Brasil (La Compañia Editorial”).
Nem sempre foi assim. A visão dos dois argentinos é um contraste com as aquarelas de Thomas Ender, as pitorescas gravuras de Debret, as versões românticas de Rugendas no século 19. Tristes Trópicosmarcou o olhar de Lévi-Strauss e do mundo sobre o Brasil no século 20, mas hoje não somos apenas tristes nos relatórios das empresas mundiais de segurança. Somos um país, violento, corrupto, perigosíssimo.
Cinco anos antes da vinda de Arlt, Rudyard Kipling via no Brasil entre 1925 e 27 a montanha que muda de lugar para aturdir o visitante, referindo-se ao Pão de Açúcar, uma festa permanente durante o Carnaval, uma vitória-régia em seu próprio habitat no Jardim Botânico carioca e, apesar da caótica metropolização urbana em São Paulo, definiu o país como um fascinante e misterioso mundo à parte (As Crônicas do Brasil,Brazilian Sketches, Landmark). Menos mal.
Chegamos ao século 21 identificados nos jogos online pela risada escandalosa, e a fama de praticar assaltos e arrastões.
Em 2005, Josep Ramoneda publicou a reportagem “Notas sobre o Brasil” no El País.Cabia direitinho na leva de filmes e nas reportagens da época. “Desde o momento de aterrisar, o Rio de Janeiro confirma o tópico sobre a cidade: futebol, favelas, violência”. Percebeu a endogamia das elites (“tudo funciona a partir da amizade e da relação pessoal”). Observou a estética da periferia, captou melancolia na Cidade Maravilhosa (“desde que Kubitschek tirou a capital do Rio a cidade vive a sensação de decadência”) e São Paulo não escapou de seu olhar ferino (“se o Brasil é a terra da cor, São Paulo é a apoteose do cinza. Uma cidade de rara e atrativa feiúra”).
Dois anos antes de Ramoneda, o famoso desenho animado trouxe a família Simpson ao Rio para ser assaltada por pivetes e atacada por macacos.
Projeto desprezado
O que aconteceu com o olhar dos estrangeiros ou com o Brasil? Ou o que influenciou o mundo foi o olhar dos próprios brasileiros sobre nosso país, reproduzido na imprensa, livros, músicas, filmes, artes plásticas?
Fornecíamos paisagens deslumbrantes, mulheres e sexo em Meu Amor Brasileiro, filmado em 1952, onde, ao desembarcar no Rio, Lana Turner já sente um romance no ar. “Um paraíso: mulheres, álcool e música”, diz o personagem de O Homem doRio, de 1964, com Jean-Paul Belmondo.
Mas quantas vezes assistindo a um filme ficamos vexados ao ouvir que o Brasil é o melhor lugar para fugitivos? Para fugir da máfia em A Honra do Poderoso Prizzi(John Huston,1985), Kathellen Turner (Irene Walker) sugere a escapada a Jack Nicholson (Charley Partanna): “Podemos ir para Hong Kong, para o Brasil ou para a África do Sul”. Depois de um fabuloso assalto em Onze Homens e um Segredo(Steven Soderberg, 2001), Frank Sinatra sugeriu à comparsa Angela Dickinson o melhor lugar para fugir: Brasil. Quinze anos antes, Jean-Louis Trintignant, no papel do fascista Marcello, vislumbrava o Brasil como o lugar ideal para passar despercebido “se o negócio desandar aqui na Itália”, referindo-se à Itália de Mussolini em O Conformista, de Bernardo Bertolucci. E quantos espiões fugiram para o Brasil, como James Mason, que se passava por camareiro na Embaixada Britânica, fotografava os segredos do cofre para vender aos nazistas em Cinco Dedos,de Joseph Mankiewcz (1952)?
Trinta anos depois de Orfeu Negro,de Marcel Camus (1959), adaptado de uma peça de Vinicius de Morais com música de Tom Jobim, a favela descambou para a guerra civil nas telas, nas reportagens, nos noticiários de televisão.
Meus colegas esperavam mais da comédia de Betse de Paula, Vendo ou Alugo, com Marieta Severo, Marcos Palmeira, Nathalia Timberg e as impagáveis Ilka Soares, Carmem Verônica e Daisy Lúcidi. Mas a comédia é ótima. Não só para desopilar o fígado, mas para fazer uma gozação sobre as UPPs, a pacificação dos morros cariocas e a última moda do Rio: estrangeiros comprando espaços em favelas para transformar em Pousadas d’Or “no coração da realidade brasileira, com a cor local autêntica”. Divertidíssimo.
Sorria, Você Está na Barra, de Izabel Jaguaribe, é um documentário sobre o bairro que cresceu seis vezes mais que a zona sul carioca, com projeção para 1 milhão de habitantes em 2020. Quem escolhe a Barra? Emergentes, atrizes como Letícia Spiller, a ex-miss Brasil Adalgisa Colombo, que morreu este ano; surfistas, pagodeiros pescadores, jovens em busca de aluguéis mais baratos. A Barra virou sonho de todo morador do subúrbio quando subir de vida. Ou seja, adquirir o kit status de vida, piscina-churrasqueira-sauna. “Você sabe que é caviar?/ Nunca vi, só de ouvir falar”, é a música de Zeca Pagodinho que ilustra o sentimento local.
O carioca tradicional discrimina o bairro, “outro tipo de gente”, e os moradores da Barra declaram no filme que se sentem mal, por exemplo, no chiquérrimo Shopping Leblon – “são pedantes”. O atrativo maior da Barra são os ícones importados do estrangeiro. Não há um shopping que não tenha nome importado – Downtown, Village Mall, Square, Millenium, New York Center. Ou seja, aqui vale o que o olhar do novo rico captou no estrangeiro, e traduziu como finesse. Uma autêntica Estátua da Liberdade, colunas gregas, pirâmides egípcias, totens, a cópia do Oxford Circle, cabines vermelhas de telefone inglês, uma Torre Eiffel, uma Miami Beach – tudo que o carioca de raiz considera cafona, o contrário do que o urbanista Lúcio Costa, um dos líderes do movimento modernista, pretendia fazer da Barra no seu projeto desprezado. Uma cidade dentro da cidade, os moradores preferem fazer a vida por lá.
Andar a pé
Esta semana estreou Flores Raras,de Bruno Barreto, onde a atriz principal é o Rio de Janeiro dos anos 1950 e 60. Engana-se quem pensa que é só sobre os 16 anos de amor entre a arquiteta autoritária/frágil Lota Macedo Soares (Glória Pires) e a poeta homossexual, alcoólatra, asmática, desavisada e determinada Elizabeth Bishop (Miranda Oto). É uma delícia ver as imagens recriadas, os carros reproduzidos, as chapas, os móveis, o estilo, a paisagem. A casa Samambaia não pôde ser a original traçada por Sergio Bernardes em Petrópolis, que até Aldous Huxley visitou, mas é modernista, assinada por Oscar Niemeyer, em Pedro do Rio.
É estranha a visão do esqueleto do Aterro do Flamengo antes de virar o parque que hoje é, cartão postal da cidade sugerido por Lota ao então governador e amigo Carlos Lacerda. Não, o filme é muito mais do que o romance entre as mulheres, o filme é o olhar de Lota para o Rio idealizado, e o de Bishop sobre o país que a espantava. Ora pelo bem – a paisagem, a grandiosidade, o Brasil luxuriante, os magníficos zebus da terra tropical. Ora pelo mal – a compra de crianças, a indiferença da população ao golpe militar, os tolos, simpáticos e sujos homens que viviam por aqui . Ora maravilha, “o lugar me agradava; agradava-me a ideia do lugar”. Ora “é mesmo um horror”, como na carta que escreveu ao poeta e amigo Robert Lowell, em 1953. “Nunca me senti uma exilada, mas também nunca me senti em casa.”
Bishop descreveu seu estado de espírito em relação ao Brasil na entrevista concedida ao Christian Science Monitor, em 1978,um ano antes de morrer em consequência de um aneurisma. E escreveu num poema: “Será falta de imaginação o que nos faz procurar/ lugares imaginários tão longe do lar?/ Ou Pascal se enganou quando escreveu/ que é em nosso quarto que devíamos ficar?” Embora a atriz australiana Miranda Oto, que viveu Elizabeth Bishop no filme de Barreto, tenha declarado a este Observatório, em entrevista concedida antes da estreia, que tudo o que viu deste Brasil de hoje a instiga a voltar e conhecer mais, e mais.
Flores Raras, como diz o poema “Uma Arte” (abaixo), de Bishop, que abre o filme – o último de Poemas do Brasil(Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto) – é também sobre a arte de perder. Se para Bishop a perda foi de um Brasil antiutópico, cheio de exotismos que não apagavam a miséria, para os brasileiros a perda foi do Rio que Lota pretendeu ao converter 1,2 milhão metros quadrados de “carrascal” num espaço livre, o Aterro do Flamengo, “onde se pudesse reaprender a arte de andar a pé” entre 240 espécies diferentes de plantas.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério;
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudades deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
Que a arte de perder não chega a ser mistério
Por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
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Norma Couri é jornalista