Editores do jornal britânico The Guardian tentaram explicar, esta semana, um dos episódios mais estranhos da história do jornalismo na era digital. No dia 20/7, em um porão dos escritórios do jornal, em Londres, um editor e um especialista em computação usaram um triturador e outras ferramentas para destruir discos rígidos de computadores e cartões de memória que continham cópias de arquivos secretos vazados por Edward Snowden.
A ação foi observada por técnicos da CGHQ, agência de espionagem e segurança britânica, que tiraram fotos e fizeram anotações, mas nada levaram. O editor-chefe do Guardian, Alan Rusbridger, já havia informado ao governo britânico que existiam outras cópias dos arquivos fora do país e que o jornal não era o único receptor e detentor dos arquivos vazados pelo ex-técnico da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA. No entanto, o governo insistiu que o material deveria ser apreendido ou destruído.
A tentativa inicial do Reino Unido para impedir a divulgação do conteúdo dos arquivos aconteceu duas semanas depois da publicação da primeira matéria com base no vazamento de Snowden, sobre uma ordem secreta da corte americana obrigando a provedora de telefonia, TV e internet Verizon a entregar dados sobre os registros telefônicos de seus clientes. Depois deste texto, foi publicado outro sobre como a agência de espionagem britânica estava usando os dados coletados pelo programa de monitoramento online da NSA, chamado de Prism. Dias depois o jornal publicou outra reportagem revelando como a inteligência britânica espionou aliados do país em dois encontros em Londres.
Visitas em série
Após a publicação das reportagens, dois funcionários do governo britânico foram ao escritório do Guardian. Falaram com Rusbridger e com seu subeditor, Paul Johnson, e pediram os arquivos de Snowden que estavam com o jornal. Eles alegaram que o material era roubado. Não houve ameaça escrita. Os editores argumentaram que os documentos eram de interesse público.
Depois de três semanas – e com a publicação de matérias sobre vigilância de internet e telefonia –, os funcionários voltaram ao Guardian com uma aproximação mais dura: “Vocês já se divertiram. Agora queremos o material de volta”, teriam dito. Eles acrescentaram, ainda, que a paciência com o jornal estava se esgotando e que governos, especialmente o da Rússia e o da China, poderiam invadir a rede de TI do Guardian – os editores explicaram que os arquivos não estavam guardados no sistema do jornal. Mesmo assim, em um outro encontro, um especialista da agência de inteligência argumentou que o material ainda era vulnerável.
Entre os dias 16 e 19 de julho, o governo aumentou a pressão e, em uma série de telefonemas e encontros, ficou mais explícita a possibilidade de uma incursão policial ou ação legal. Advogados do jornal acharam que o governo poderia dar início a procedimentos criminais.
Com medo de ter que entregar o material ou ter sua publicação interrompida, o Guardian optou por destruir os arquivos. Rusbridger argumentou que a entrega do material representaria uma traição à fonte – no caso, Snowden –, já que os arquivos poderiam ser usados na sua condenação. “Não acredito que teríamos o consentimento de Snowden para entregar o material e não queria ajudar as autoridades britânicas a saber o que ele nos forneceu”, contou Rusbridger, acrescentando que a publicação de matérias pode continuar a ser feita a partir dos EUA ou do Brasil. Nos EUA, jornalistas estão protegidos pela Primeira Emenda da Constituição americana, que garante a liberdade de expressão.
Doze dias depois da destruição dos arquivos, o jornal publicou matéria sobre o financiamento americano de operações de escuta da CGHQ e um perfil de como é trabalhar no escritório da agência em Cheltenham. A versão americana do Guardian, sediada em Nova York, continuou a publicar evidências da cooperação da NSA com empresas de telecomunicações americanas para maximizar a coleta de dados na internet e aparelhos celulares em todo o mundo.
Pressão do governo
O governo britânico vem tentando aumentar a pressão sobre jornalistas. No último fim de semana, ficou detido por quase nove horas, no aeroporto de Heathrow, em Londres, o brasileiro David Miranda, parceiro do correspondente do Guardian Glenn Greenwald, para quem Snowden entregou os documentos vazados. A detenção de Miranda foi justificada por uma seção da legislação britânica aprovada em 2000, destinada ao combate ao terrorismo. O brasileiro havia ido para a Alemanha, em viagem paga pelo Guardian, e trazia arquivos digitais com mais documentos de Snowden.