Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os Amarildos, onde estão?

O caderno “Aliás”, publicado no domingo (25/8) pelo jornal O Estado de S. Paulo, traz uma entrevista e dois artigos que analisam a questão dos crimes de Estado. O tema, quase sempre relacionado à vigência das tiranias, comparece com frequência à imprensa por conta da guerra civil na Síria e da crise no Egito, ou tendo como referência a violência praticada durante as ditaduras militares que assolaram a América Latina no século passado.

Mas o “Aliás” não trata centralmente desses episódios históricos, nem mesmo revisita os períodos mais críticos da revolução cubana e seus fuzilamentos: o texto fala do Brasil de hoje, onde a ação da polícia segue produzindo uma rotina de assassinatos e desaparecimentos nos territórios da pobreza.

A entrevista principal (ver aqui) tem como protagonista o sociólogo carioca Luiz Antônio Machado da Silva, de 72 anos, que dedicou toda sua trajetória intelectual a pesquisas sobre favela, sociabilidade e violência. Seu objeto de estudo mais recorrente é o grande número de assassinatos comprovados e supostos que são registrados em circunstâncias que os boletins de ocorrência – quando existem – anotam como “auto de resistência”.

O texto parte de um episódio-símbolo, o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza, que, aos 47 anos, foi detido por policiais na Favela da Rocinha, no Rio, no dia 17 de julho deste ano, um domingo, e nunca mais foi visto.

Amarildo é um ícone da arbitrariedade que resiste no aparato do Estado responsável pela segurança pública, e que se reflete tanto nos assassinatos e desaparecimentos quanto na naturalidade com que agentes públicos espancam jovens internos na Fundação Casa, em São Paulo, como observa a entrevista. Segundo o sociólogo, somente no Rio de Janeiro 10 mil pessoas foram mortas entre 2001 e 2011 em ocorrências envolvendo policiais e que nunca foram esclarecidas.

Além dessa estatística espantosa, deve-se ainda levar em conta os milhares de casos de vítimas cujos corpos nunca foram encontrados. Segundo o sociólogo, trata-se de uma ferida que os setores dominantes da sociedade, de modo geral, têm ignorado, o que estimula a continuidade da ação repressiva da polícia.

Abrindo a caixa-preta

Os “territórios da pobreza” não são apenas as favelas, onde se concentram os desprovidos da cidadania, mas também os loteamentos irregulares, os baixos de viadutos ocupados por gente sem casa, e todos os lugares para onde se deslocam os indivíduos excluídos da sociedade.

No texto do “Aliás”, uma das novidades é que a Ordem dos Advogados do Brasil vai lançar uma campanha para exigir o esclarecimento das mortes dos 10 mil Amarildos assassinados no Rio na última década. Mas, além disso, a notícia dá conta de que pelo menos uma das instituições que até aqui passavam ao largo dessa vergonhosa estatística finalmente se dispõe a cobrar uma mudança nas práticas dos agentes do Estado.

É fato constrangedor, para a cidadania consciente, que parte da sociedade olhe para o lado quando a arbitrariedade atinge os marginalizados. Trata-se, claramente, da manifestação de um desejo inconsciente de ver o ambiente público “higienizado” dessas representações das mazelas que o processo de modernização do país deixa para trás.

Embora não se possa dizer que os intelectuais partilham esse desejo de “limpeza social”, registre-se que a ocorrência de estudos como o do sociólogo Machado da Silva é ínfima, se comparada à profusão dos casos de abuso e da necessidade de esclarecer as causas da permanência dessa violência em tempos de democracia.

Sabe-se que os intelectuais com acesso à grande mídia fazem parte de um subcampo específico, delimitado pelo valor que a imprensa dá aos objetos de pesquisa.

E esses temas raramente focalizam as beiradas marginais da sociedade.

No caso em questão, o problema que Amarildo simboliza só veio a ocupar duas páginas do caderno de reflexões do Estado porque entrou na agenda das manifestações de rua ocorridas a partir de junho, invadindo as redes sociais da internet, conforme reconhece o jornal.

Mas, mesmo quando esses fatos ganham relevância suficiente para ocupar espaços significativos na imprensa, eles logo são ultrapassados por qualquer outro acontecimento, como ocorreu no episódio de desocupação do bairro de Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), ocorrido em janeiro de 2012: os jornais nunca se preocuparam em esclarecer as denúncias de violência contra os cerca de 5.500 moradores que ocupavam a área desde 2004.

A anunciada campanha da OAB para esclarecer episódios como esse pode tirar da obscuridade essa vergonha que o Brasil tenta esconder, desde que a imprensa se disponha a abrir a caixa-preta da polícia.