Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dilema da justiça pautada

É notório que a militância política no país arrefeceu e, mais do que isso, mudou de patamar, passando do ativismo compulsivo atrelado à ascensão do petismo ao poder, à aversão político-partidária evidenciada na recente onda de protestos. Sumiu, ou pelo menos mitigou, a defesa incondicional e intransigente do governo petista, como era comum nos dois mandatos de Lula, bem como o mutirão avesso à grande imprensa, acusada de partidarista, golpista, oportunista e por aí afora. O que não significa que a oposição tenha se dado bem com isso, pois a saturação com a política tem tudo a ver com a percepção de que as falcatruas e desmandos são generalizados e que, portanto, convém desconfiar de todos. Começando pela própria mídia.

E ponha desconfiança nisso. Ao contrário do mensalão, tema obrigatório a quase uma década da grande imprensa, o recém-descoberto escândalo de manipulação de licitações nos transportes públicos de São Paulo, coincidentemente durante o mesmo período, e que pode ter subtraído mais de 1 bilhão de reais dos cofres públicos, nem de longe merece o mesmo tratamento. Nem mesmo a Folha de S.Paulo, que levantou a lebre, tem dado a devida continuidade e aprofundamento no noticiário do cabeludo imbróglio, cunhado de “trensalão” pelo irreverente colunista José Simão.

Longe de surpreender, tal parcimônia apenas reforça o conceito negativo aferrado à grande imprensa através dos tempos, em decorrência não só do tratamento desigual no âmbito da política, privilegiando o PSDB, o partido elitista e conservador por excelência, em detrimento de tudo o que diz respeito ao petismo. Não que o PT seja merecedor de coisa melhor, que seus antecedentes dispensam comentários. Mesmo muitas vezes forçando a barra, a imprensa mais acertou do que errou no teor e no tom das críticas, principalmente no que diz respeito ao mensalão, cujos delitos o STF do implacável Joaquim Barbosa, contrariando a tradição de subserviência ao poder da casa, não contemporizou, se bem que a aplicação das penas seja coisa pra inglês ver. Pelo menos no que depender do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, cujo empenho em livrar a cara dos réus protagonizou mais um constrangedor bate-boca entre ambos numa das sessões para a apreciação dos recursos.

Os trâmites legais

E realmente, para quem quer conturbar e embaralhar as coisas, os próprios meandros jurídicos permitem alegar que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Mesmo sendo clara a natureza dos delitos correlatos ao poder, a promiscuidade entronizada na tríade governamental-político-administrativa, por ser dominante, faz com que mesmo os piores escândalos se transformem em questões arrastadas e mal resolvidas, submetidos a uma ordem jurídica deformada, que em geral tolhe a própria justiça, como acontece agora com a procrastinação das penas do mensalão. Daí o precedente algo maroto de responsabilização por presunção, em que as evidências se sobrepõem às provas documentais, cujo grande desafio é a imputação discricionária, pautada por ranços político-ideológicos, como sói acontecer sob a batuta de uma imprensa não menos corrompida.

Afinal, tanto os malfeitos do lulopetismo, que foram e continuam ocorrendo às escâncaras, a partir da certeza da impunidade e leniência popular, como o estilo dissimulado e enrustido do tucanato, capaz de obliterar por tanto tempo um esquema tão grandioso e longevo como parece ser este das licitações fraudulentas nos transportes públicos paulistanos, são iguais na essência. Diferem apenas no modus operandi, no estilo, o que não livra – ou não deveria – a cara de ninguém, pois como se diz no popular, pau que bate em Chico, bate em Francisco, e vice-versa.

É claro que a confirmação da eventual culpa e do envolvimento da cúpula dos governos tucanos em arranjos que se prolongam por uma década, ainda está na dependência de provas conclusivas, e espera-se que isso aconteça com a liberação dos documentos em poder do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). O que veio a público até o momento parece indicar que pelo menos o ex-governador José Serra tinha conhecimento do esquema, já que seu nome consta em trocas de e-mails com a Siemens, que de mentora passou a delatora da maracutaia, mas os documentos incriminatórios ainda não foram apresentados. Sei é que serão, com toda essa operação abafa nitidamente em curso.

Resta saber se os trâmites legais (alô, alô, Ministério Público) transcorrerão sob a mesma ótica que prevaleceu em relação à maior parte dos réus do mensalão, que foram condenados muito mais pela soma de evidências do que outra coisa, e, sobretudo, por pressão da opinião pública em consonância com a mídia.

O gigante em estado catatônico

Esse é o diferencial que mais chama a atenção: se não há dúvida da existência do esquema fraudulento nas licitações dos transportes paulistanos, por conta da confissão de culpa da Siemens, e já havendo parâmetros e jurisprudência pertinentes a conluios semelhantes, por que a imprensa reluta em aprofundar as apurações sobre um rombo que pode ter sido ainda maior e mais duradouro que o do mensalão? Pergunto por perguntar, pois a resposta está na cara e diz respeito à parcialidade e mendacidade dos quatro grupos hegemônicos que controlam a mídia no país. Inapetência que a revista Veja, em particular, sequer procura disfarçar, deixando claro sempre que pode a sua aversão a tudo que diz respeito ao petismo.

Por essas e outras, chego à conclusão de que a militância política não está minguando por acaso e os nichos que ainda sobrevivem é graças à secular intemperança e ignorância do contingente amorfo da população. Com o volume de informações disponíveis hoje em dia, parte significativa da sociedade tem noção inequívoca da natureza sórdida da atividade política, indiferentemente a ideologias, partidos, nomes. Sabe que, grosso modo, é tudo farinha do mesmo saco. E a mídia não faz mais do que endossar esse jogo de cartas marcadas, articulando e tomando partido nas escolhas ou não, pois no fundo o objetivo é o mesmo: hegemonia e poder.

Daí o papel vital da opinião pública como o contraponto que a imprensa não consegue ser, e concomitantemente estreitando a vigilância sobre ela, como, aliás, já vem acontecendo graças aos recursos cada vez mais incisivos disponibilizados pela internet. Recursos os quais, superestimados ou não, chegam para agregar informação e participação no campo das discussões e ideias, contribuindo assim em boa hora para a própria ampliação de horizontes do ofício, para muitos, em franco processo de extinção. E de preferência, sem o preconceito e discriminação que infelizmente tem permeado os debates sobre as novas mídias digitais e seus rebentos, como a Mídia Ninja.

Há espaço para todos, um público ávido por novidades e disposto a participar mais ativamente no sentido de colocar o país nos eixos – com o perdão do trocadilho involuntário com o movimento FdE. O saldo disso é que a propalada alienação popular, o gigante em estado catatônico, aos poucos está dando lugar a um ativismo mais cívico e maduro, em que o viés político é secundário. Por enquanto, com muito mais barulho e baderna do que outra coisa, mas nem por isso o fenômeno é menos válido e oportuno. Afinal, como mostra a História, grandes transformações só se conseguem no grito.

Vaticínios precipitados

O que não impede que a discussão, como tudo que se torna recorrente, acabe cansando. Principalmente quando não sai da mesmice, ou pior ainda, empaca em questões pouco elucidativas, ensejando reações desproporcionais aos eventos. E se diatribes assim torram a paciência nas relações pessoais, no âmbito da mídia tendem a se tornar contraproducentes, ainda mais quando descambam para o tradicional destampatório entre a fragmentada intelligentsia aborígene.

É o que vem acontecendo em relação às novas mídias digitais, que alavancam experimentos como o movimento Fora do Eixo, matriz da mídia ninja, que de embrionária e precursora de um novo modelo de jornalismo, passou a ser alvo de ataques que extrapolaram a área funcional, por assim dizer, para a chamada baixaria, com a desqualificação de seus mentores e do próprio projeto em si.

Para variar, mistura-se a crítica normal e sensata acerca de uma proposta se não inovadora, sem dúvida pioneira, com a ladainha pernóstica de cunho político-ideológico, que serve de pretexto para a demonização dos novos modelos multimídia, possivelmente por despeito pela projeção alcançada na cobertura dos recentes manifestos que mobilizaram o país. Incômodo exacerbado pela afoiteza com que alguns passaram a decretar o advento de uma nova era no jornalismo, com a substituição do formato tradicional pela parafernália digital atrelada às onipresentes redes sociais. Vaticínios que logo se mostraram não só precipitados como ingênuos, pela sublimação das limitações básicas de operacionalidade, como o ambiente restrito e a dependência de equipamentos para retransmissão, sem o que nada funciona.

Mal na foto

Imaginar que esse tipo rústico de abordagem venha a ser protagonista no futuro, por mais sedutora que pareça a proposta de um jornalismo em estado bruto, sem as imposições de praxe, só deixa de soar como utopia e disparate quando visto sob o ponto de vista promocional. Nesse sentido sim, há que se parabenizar não só os autores de panegíricos tão alentados, mas, principalmente, os dois cabeças do movimento Fora do Eixo, Pablo Capilé e Bruno Torturra, catapultados à condição de celebridades por conta da desmedida repercussão da coisa.

Por tudo que já foi dito e repercutido, era de se esperar que a discussão desembestasse para o panfletarismo barato que campeia no meio jornalístico, esgrimido pelas facções de sempre, que se aproveitam de qualquer pretexto para exibir seu sectarismo cavernal. Sem o quê, por sinal, o assunto nem teria decolado. Haja vista que os próprios mentores e lideres do movimento admitem a precariedade e as limitações do sistema, agravado pela falta de capital, deixando implícito que uma revolução jornalística exige um pouco mais de embasamento e lastro, e não necessariamente desvinculado dos veículos tradicionais, já que estes possuem não só os recursos técnicos necessários, como financeiros. Razão pela qual, quando querem, dão conta do recado.

Vai daí que nada justifica a continuidade de um charivari em que ambas as partes ficaram mal na foto.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP