Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ela ainda estuda Shakespeare

“90 anos não é fácil, não.” Era Barbara Heliodora, especialista em Shakespeare e crítica teatral, entrando com dificuldade na sala de sua casa, no Cosme Velho, no Rio, na última segunda.

Ela comemora hoje [quinta-feira, 29/8] seu aniversário. Durante a conversa, a atriz Fernanda Montenegro ligou para organizar a festa. São amigas desde os anos 1950.

Heliodora reclama, mas fala por duas horas, animada, sem perder a verve e a precisão. Conta que já estava na plateia de “Romeu e Julieta”, do Teatro do Estudante, momento significativo na modernização teatral, em 1937.

Sua mãe, Anna Amélia, havia criado a Casa do Estudante, origem do grupo, ao lado de Paschoal Carlos Magno. Na companhia, em 1948, o ator Sérgio Cardoso protagonizou um histórico “Hamlet” e a própria Heliodora foi Gertrudes.

“Só no Brasil as pessoas são tão loucas”, diz, rindo. “Nunca tinha pisado num palco. A moça que fazia a rainha teve apendicite e, em quatro dias, decorei. Detalhe: na hora, já vista pelo público, o vestido vermelho prendeu num gancho e rasgou.”

A carreira durou uma semana. “Nunca voltei, não queria ser atriz. Mas ninguém pode dizer isso: fui substituída por Cacilda Becker.”

Dedicou-se a ser espectadora, como gosta de dizer, e professora. Muito do que viu e ensinou em cinco décadas foi reescrito para um novo livro, “História do Teatro Ocidental”, que sai daqui a um mês pela Perspectiva.

Toda quinta ela reúne um grupo de jovens em casa para estudar Shakespeare. Reproduz assim a forma como se aproximou do dramaturgo inglês.

Heliodora ganhou seu primeiro volume shakespeariano da mãe, aos 12, e ao entrar para a faculdade conseguiu uma bolsa para estudar no Connecticut College, nos EUA.

“Professores muito bons, todos, mas principalmente uma professora que ensinou Shakespeare”, conta. Foram dois semestres “preciosos” em que leu, “em classe, 16 ou 18 das peças”, com ensinamentos para o resto da vida.

A dedicação ao autor só tem paralelo na função de crítica ou, como repete, espectadora. Começou na “Tribuna da Imprensa” de Carlos Lacerda, em 1957, e passou ao “Jornal do Brasil”. Com Paulo Francis no “Diário Carioca” e outros, criou uma nova e agressiva geração de críticos.

Parou em 1964, quando foi para o Serviço Nacional de Teatro e montou um curso para os censores. “Sabe qual era a origem deles? A Polícia Especial”, tropa de choque do antigo Distrito Federal no Rio. “Eles não sabiam nada.”

Diz que “a censura foi uma coisa horrorosa, mas antes já tinha acontecido uma coisa muito ruim para o teatro, quando o Arena quis contestar o TBC, depois o Zé Celso… Cada novo grupo dizia horrores dos outros. Começou aí”.

Só voltou à crítica em 1985, de início na revista “Visão” e logo depois no jornal “O Globo”, onde publica até hoje. Sobre a extinção de títulos em que trabalhou, se angustia. “Não temos mais jornais.” Vê o fim de “Correio da Manhã” e “JB” como “inacreditável”.

Cada vez mais solitária na crítica carioca, lamenta não existir mais “a visão ampla, de várias posições”, e fala: “Faço o que posso… Vou, vejo coisas horríveis. Você não sabe o que é”.

Vou começar por Shakespeare.

Barbara Heliodora – Foi um rapaz talentoso. [risos]

Um dos “university wits” [sagazes universitários], contemporâneo de Shakespeare, Thomas Lodge, esteve no Brasil em 1592.

B.H. – Ah, eu li que ele esteve em Santos e levou uns documentos. Acho isso fascinante. Não sabia muito a respeito do Lodge. É sempre um dos nomes citados na época, inclusive por causa do “As You Like It” [comédia shakespeariana baseada em obra de Lodge], mas essa história de ele ter vindo a Santos é ótima. E não é uma coisa improvável. Digo, é comprovado, mas não é algo que se diga, “oh, meu Deus!”. Não, acontecia bastante esse tipo de coisa.

Havia uma relação até grande entre o Brasil e a Inglaterra na época. A Inglaterra começava a avançar pelo mundo.

B.H. – Em matéria de relações da Inglaterra, a coisa mais incrível que eu vi foi, em Londres, um leilão ou coisa assim de objetos russos antigos. Houve uma exposição que me deixou de boca aberta, ilustrando as relações da Elizabeth com a Rússia. Eles tinham uma mobilidade muito maior do que a gente pensa. De maneira que essa história do Lodge eu achei, realmente, ótima.

Quando é que uma carioca como você encontrou Shakespeare?

B.H. – Meu primeiro volume de Shakespeare a minha mãe me deu quando eu tinha uns 12 anos. É claro que não entendia tudo, mas estudei até o primeiro ano do ginásio no colégio Andrews, que tinha inglês desde o jardim da infância. De maneira que algum inglês eu já tinha e catava um pedacinho aqui, outro ali. E eu sempre gostei de teatro.

Quando entrei para a faculdade, aqui no Rio, foi para o curso de [línguas] anglo-germânicas. Sempre gostando muito de teatro, tirei uma bolsa para estudar nos Estados Unidos, pelo Institute of International Education, e fui para o Connecticut College, naquele tempo “for women”. Por sorte, um “college” cujo departamento de inglês era ótimo. Professores muito bons, todos, mas principalmente uma professora que me ensinou Shakespeare era ma-ra-vi-lho-sa. Foi precioso o que eu estudei com ela. Foi para o resto da vida. Fiz com ela dois semestres de Shakespeare, ao todo, em classe, 16 ou 18 peças. Quando estávamos falando de “Júlio César”, ela diz: “Aqui tem o discurso do Brutus e o do Marco Antônio. Qual é a maior diferença entre eles?”. É claro que, com 17, 18 anos, você está transbordando de intelectualismo, então começamos a falar: “Porque politicamente o Brutus diz isso, Marco Antônio não sei o quê…”. “Não, mas eu quero saber a maior diferença.” Quando todo mundo já tinha falado, ela disse assim: “O do Brutus é em prosa, o do Marco Antônio é em verso”. Quer dizer, isso tem uma motivação. Isso, para mim, foi uma coisa básica para todo o Shakespeare. Você vê como é que ele manipula o texto para chegar onde quer. Uma coisa como esta é definitiva.

E não era só Shakespeare, para você.

B.H. – O que eu acho uma coisa fantástica naquele tempo é que ele tinha concorrência. A riqueza de autores daquela época é uma coisa incrível. Não sei, de repente baixa o santo numa época e saem coisas maravilhosas. Não baixou o santo aqui na Bossa Nova? De repente, havia vários. No teatro elisabetano, são dúzias de autores, vários deles muito bons. Eu sempre digo que, para mim, quando Shakespeare chegou a Londres, entre 1588 e 1590, ele foi ao teatro várias vezes, viu aquela variedade de tipos de peças. E disse assim, “para escrever, tenho que dominar tudo isso, tenho que aprender tudo isso”. Os pré-shakespearianos, os “university wits”, foram os grandes criadores dos gêneros. Eles tiveram a sorte de, ao contrário da França, não terem teoria nenhuma atrás. O único teste para o dramaturgo elisabetano era…

O público.

B.H. – Põe no palco. Funciona? Pode. Não funciona? Não pode. Você pega as primeiras peças de Shakespeare. Ele escreve “A Comédia dos Erros”, que é uma comédia romana, o “Titus Andronicus”, que é uma tragédia senecana, os “Henrique 6º”, que são peças crônicas. Aí ele vai aprendendo. Ele vai escrever ainda muito cedo “Os Dois Cavaleiros de Verona”, que é uma comédia romântica. E ele conclui esse aprendizado com “Ricardo 3º”. Os três “Henrique 6º” acabam com “Ricardo 3º”. É o único gênero que foi ele que criou. É a peça histórica, em vez de ser só a crônica, em que você mata, mata, mata e no fim morre de resfriado. [risos] Não, com a peça histórica ele pega um reinado, uma figura, e dá a visão de uma época. A peça histórica foi uma criação pessoal dele. Era politicamente a mais importante.

E foi exatamente o tema do seu livro central, “A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare”. Mas o homem político, para você, não é aquele que se costuma ver. Não é Shakespeare tentando comentar a política da época ou fazendo teatro político.

B.H. – Exatamente. Se você pegar as duas tetralogias –três “Henrique 6º” e “Ricardo 3º”; “Ricardo 2º”, dois “Henrique 4º” e “Henrique 5º”– na primeira você ainda tem a luta pelo poder, uma coisa próxima ao que era anteriormente. Mas na segunda é uma coisa que ninguém antes dele havia feito. É falar sobre reis e refletir sobre a relação deles com o poder. Não só do rei com o governo, mas do governo com os governados. Você pega os monólogos dos reis e tem visões completamente diferentes do próprio governo.

Se pegar o Ricardo 2º, que acreditava no direito divino dos reis, ele tem uma fala maravilhosa, “vamos sentar e falar dos reis, que morreram”, mas no fim ele diz, “eu preciso de pão e busco amigos, você pode dizer que eu sou rei?”. Quer dizer, ele achava que rei era uma coisa que não precisava comer nem ter amigo. Quando vem o Henrique 4º, ele tem um monólogo maravilhoso. Ele não consegue dormir e acaba dizendo, “dorme inquieta cabeça coroada”. E no fim, na batalha, quando o soldado diz para ele, “mas o rei está se lixando, nós vamos para o inferno, não para o céu”, ele reflete sobre a responsabilidade do rei. O rei é responsável pela guerra, mas não pelo pecado íntimo, particular, isso cada um tem o seu. O rei só é responsável pelo que manda fazer. Mas então você tem visões de governo. É fantástico.

A sua visão da política foi moldada por Shakespeare?

B.H. – A ideia de que o governo deve ser responsável, talvez. Mas o que acontece é que… Para mim a grande maravilha de Shakespeare é que ele viveu um grande caso de amor com a humanidade, a vida inteira. Acho que gente fascinava Shakespeare como nada mais. Você tem, na dramaturgia dele, um painel. Foi a vantagem de não ter a teoria que caiu sobre os franceses, que tinham de fazer tudo ligado só a meia dúzia de personagens. Até o século 18, 19, Voltaire e outros diziam que Shakespeare era louco. Mas realmente, se você tem a visão dramatúrgica francesa, em que concentra pensamentos numa fatia muito estreita do espectro social… No “Ricardo 3º”, você tem 53 personagens que falam! Então, para eles, ele era louco.

Mas eles não sabiam como era o palco elisabetano. Na Inglaterra, quando Shakespeare e os outros elisabetanos escreveram, já tinha mais de 300 anos, quase 400, que havia teatro. Primeiro dentro da igreja, mas o caso é que nunca mais parou. Foi evoluindo pela própria vivência teatral. Nada foi imposto. Quando chega o século 14, o teatro já saiu da igreja e tem coisas ótimas. E ele é o produto dessa evolução, talvez o ponto mais alto.

Você se concentrou nas duas tetralogias…

B.H. – Eu traduzi todas.

Mas o “Hamlet”, que é considerado o ápice das peças, você não quis traduzir.

B.H. – Mas é porque tem a tradução pronta da minha mãe, que é maravilhosa. Eu acho que não pode mexer naquilo. É tão boa. Como ela era realmente poeta, a tradução tem fluência. Ela faz uma linguagem que, se você puser no palco, todo mundo vai seguir a peça. Eu não vou me arriscar, porque sei que não sai nada parecido. É uma tradução fenomenal.

Sua mãe, que deu as primeiras peças de Shakespeare para você ler, foi também quem criou a Casa do Estudante.

B.H. – Foi a fundadora, junto com Paschoal Carlos Magno.

E você foi para o palco…

B.H. – Muito acidentalmente.

Acidentalmente, mas imagino que, em parte, por essa proximidade com o Paschoal.

B.H. – Só no Brasil é que as pessoas são tão loucas. [risos] Estavam levando o “Hamlet” do Sergio Cardoso, e a moça que fazia a rainha teve apendicite, teve que ser operada. Eu nunca tinha pisado num palco. Em quatro dias, decorei o papel da rainha e fui para São Paulo. E teve um detalhe: na hora em que ia entrar em cena, quando já tinha posto o pé, já estava sendo vista pelo público, o vestido vermelho prendeu num gancho e rasgou. Eu nunca voltei, eu não queria ser atriz. Mas também ninguém mais no Brasil pode dizer isso: eu fui substituída uma semana depois por Cacilda Becker.

Você ainda não escrevia de teatro, só foi escrever muito depois.

B.H. – Pois é, eu fui fazer crítica por acaso. Tinha casado, tinha minhas filhas, depois me divorciei. E havia uma parte do teatro que eu não conhecia, que era o ensaio. Então comecei a frequentar o Tablado, para ver Maria Clara Machado dirigir. Porque eu acho que no teatro esse é o grande milagre e mistério: é transformar a folha impressa num espetáculo vivo. Quem consegue fazer isso é maravilhoso. Maria Clara era uma ótima diretora. E o Tablado era um grupo que vivia batendo papo, conversando, e o resto do pessoal dizia, “mas você devia ser crítica, você fica sempre analisando o que está vendo, que a peça é isso, aquilo”. [risos] Aí vagou a posição de crítico da “Tribuna da Imprensa” e eu fui para lá. Não queria falar diretamente com Carlos Lacerda, que era da Casa do Estudante, que eu conhecia…

Que havia sido dramaturgo.

B.H. – Também. Mas aí falei com [o autor e ator] Silveira Sampaio, que falou com Carlos e contou, “ele achou ótimo”. Fiquei lá só três ou quatro meses, porque o editor queria fofocas teatrais e eu disse, “não, essa não é a minha”. Encontrei Geraldo Queiroz, também do Tablado, e ele disse, “vou sair do Suplemento Dominical do ‘Jornal do Brasil’, escrevo sobre teatro lá, você não quer ficar no lugar?”. O Reynaldo Jardim era o editor do Suplemento Dominical. Cheguei, fui ao primeiro espetáculo, escrevi uma crítica. Podia escrever o quanto quisesse, era ótimo naquele tempo. De repente sou chamada pela condessa, que era a dona do jornal. Tinha dado um galho! [risos] O Mário Nunes era o crítico havia 40 anos. Escrevia no corpo do jornal, não no suplemento, e tudo o que ele dizia eu escrevi o contrário. Ele era muito antiquado, tradicional. Eu falei, “não tem problema, eu paro”. Parei, mas aí o Reynaldo publicou na primeira página do suplemento, “Não haverá coluna de teatro enquanto Barbara Heliodora não voltar”. Aí a condessa e o Mário Nunes aceitaram e eu voltei. Fiquei seis anos lá.

Você criou o Círculo Independente.

B.H. – Ah, pois é, isso era a patota.

Paulo Francis fazia parte, não fazia?

B.H. – Francis [no “Diário Carioca”], Henrique Oscar no Diário de Notícias”, Gustavo Dória no “Globo”, eu do “Jornal do Brasil”, Luiza Barreto Leite do “Jornal do Comércio”, o Cláudio Bueno que, se não me engano, foi para a “Tribuna da Impresa”, de onde eu tinha saído. A diferença era o seguinte. Se você publicasse alguma coisa em Teresina, de um grupo que tinha feito uma vez um espetáculo amador no interior do Piauí, você se inscrevia como crítico e podia terceirizar, dar poderes para votarem em seu nome, aqui no Rio. Havia crítico que tinha centenas de votos. Na hora de dar prêmio, negociavam a quem os amigos queriam dar. Quando fundamos o Círculo Independente de Críticos Teatrais, a primeira coisa foi que, para votar, tinha que estar atuando em uma coluna de teatro no Rio.

Me lembro de Francis falando do Círculo como algo contra os críticos do passado.

B.H. – O que acontece é que estava havendo uma noção de novo teatro. Nós tínhamos até uma preocupação de formação de plateia. Todo mundo dizia que nós afastávamos o público, mas fizemos, no teatro da Maison de France, uma série de conferências sobre história do teatro, da Grécia até o realismo, chamando o que havia de bom, de professor. Lotou o teatro, 509 lugares. Depois fizemos outro curso, sobre teatro brasileiro. Depois um chamado Aspectos do Teatro, o que é cenografia, o que é direção. Quer dizer, nós tentamos, realmente.

E vocês foram contra essa geração anterior, Mário Nunes. O Francis falava sempre do Paschoal.

B.H. – O Paschoal, não. O Paschoal era muito adventício, porque viajava, de repente saía e voltava. [imita uma voz incompreensível] Ele falava de uma maneira horrível. [risos] Mas o Paschoal eu conhecia desde que tinha seis anos. Cresci com o Paschoal, todo aquele grupo que fundou a Casa do Estudante.

Eles foram muito importantes para o teatro, não?

B.H. – Foram. O Paschoal, muito. O Paschoal ficou apaixonado pelo teatro porque entrou para o Itamaraty e foi servir na Inglaterra. E lá descobriu que Shakespeare não era montado por um deus, uma vez por ano. Todo mundo montava Shakespeare, todos os dias. Ele ficou fascinado, voltou e a primeira coisa que promovou foi o “Romeu e Julieta”, com a Sonia Oiticica e o Paulo Porto. Depois é que veio o “Hamlet”.

Você viu “Romeu e Julieta”? Era bom?

B.H. – Eu vi. Não posso julgar, mas sei que as pessoas gostavam.

Você era muito jovem.

B.H. – É. Do “Hamlet” eu tenho mais lembrança. Tinha gente que ia todo dia. Foi uma explosão, uma coisa inacreditável. Era um “Hamlet” extremamente romântico, como são os “Hamlets” alemães de modo geral, e o diretor era o [alemão] Hoffman Harnish. É o único “Hamlet” que você pode fazer com atores nessa idade. Porque atores inexperientes, para fazer um “Hamlet” introspectivo, intelectualizado, não dá. E o talento do Sérgio Cardoso era realmente uma coisa espetacular. Foi uma pena que talvez ele tenha sido elogiado um pouco demais.

A Claude Vincent, que foi crítica da “Tribuna da Imprensa”, conhecia todo mundo de teatro lá [na Inglaterra]. Eu me lembro que, quando o Conselho Britânico não conseguiu uma entrevista com o [ator inglês John] Gielgud, ela pegou o telefone e ele convidou para ver a peça dele, em Londres, e depois para tomar um drink no camarim. Ela também se dava com o [ator francês] Jean-Louis Barrault e conseguiu uma audição para o Sérgio Cardoso. O Barrault se propôs a levá-lo, mas ele disse que não, que não tinha mais nada para aprender. O talento dele foi muito limitado pela falta de desenvolvimento.

E a tradução? Do Tristão…

B.H. – É, do Tristão da Cunha, que imita a linguagem seiscentista. Que horror. [risos] É porque fica pomposa. Naquela época as pessoas ainda gostavam de coisas pomposas.

Você começou na “Tribuna da Impresa”, depois “Jornal do Brasil”…

B.H. – Eu parei de fazer crítica quando fui para o SNT, em 1964, por dois anos e meio. Mas também fiquei dando aula, de maneira que passei esse tempo todo ensinando história do teatro. Só quando me aposentei, em 1985, é que o [jornalista] Oswaldo Mendes me passou uma cantada para voltar, na “Visão”. Mas a razão é que eu fiquei ensinando este tempo todo.

Entre 1964 e 1985, houve a ditadura. Isso te afastou da imprensa, de alguma maneira?

B.H. – Me afastou, no sentido de que fui para o Serviço Nacional de Teatro. Vou dizer o que aconteceu quando fui para lá. A primeira coisa foi que não sei quem me chamou e pediu para organizar um curso para os integrantes da Censura, sobre teatro, para eles ficarem mais informados. Sabe qual era a origem deles? A Polícia Especial. Quando acabou a Polícia Especial, não sabiam o que fazer deles e transferiram para a Censura. Eles não sabiam nada. Eu lutei com a censura, quer dizer, algumas coisas eu consegui mudar, outras não.

Sabe o que eu acho? A censura foi uma coisa horrorosa, mas antes já tinha acontecido uma coisa muito ruim para o teatro. É que havia uma certa novidade, quando o Arena quis contestar o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], depois veio o Zé Celso… Cada novo grupo que aparecia dizia horrores de todos os outros. “Ele é uma porcaria, ele é desonesto, ele é ignorante.” Isso afastou o público, porque as entrevistas de xingamento mútuo eram tamanhas que o público concluía que nenhum era bom. Começou aí. Acho que as pessoas querem esquecer o quanto isso prejudicou o teatro.

Não estou querendo diminuir o horror que foi a censura. E o pior é que foram proibidas tais porcarias… Tem uma coisa interessante. Quando acabou a censura, veio a primeira peça e era tão ruim que foi um fracasso. Veio a segunda e era a mesma coisa. Quando veio uma que era muito boa, o público não foi porque já não acreditava nessa história de liberado pela censura.

Nessa época, Décio de Almeida Prado também se afasta da crítica teatral e vai para a academia, num caminho parecido com o seu.

B.H. – O Décio é o meu exemplo na vida. Quem me dera saber metade do que ele sabia. Era uma figura extraordinária, mas foi vitimado por aquela palhaçada da devolução do Saci [prêmio concedido pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, onde ele escreveu até 1968]. Décio parou de fazer crítica, poderia fazer por mais dez, 15 anos. Foi uma coisa tão chocante. São Paulo até a década de 30 não tinha teatro, era o Rio que ia lá. A presença do Décio foi um estímulo importante para o desenvolvimento do teatro em São Paulo.

A “Tribuna da Imprensa” fechou, o “Jornal do Brasil” fechou, a “Visão” fechou.

B.H. – O “Correio da Manhã” fechou, o “Diário de Notícias” fechou. Não temos mais jornais. Esse é o problema. Não é que não há crítica: não há jornal.

“O Globo” é praticamente o único jornal, que tem crítica…

B.H. – O “Correio da Manhã” fechar e depois o “Jornal do Brasil” fechar é uma coisa inacreditável.

Então, a crítica sobrevive? É possível existir uma crítica, da maneira como havia até algumas décadas atrás, com a extinção da maior parte dos títulos?

B.H. – [pausa] Eu faço o que posso. Mais do que isso não posso fazer. Eu morro de pena que não haja uma visão ampla, de várias posições. Mas eu faço o que eu posso, escrevo a minha crítica… Vou, vejo coisas horríveis. [risos] Você não sabe o que é. É uma coisa assustadora.

Mas você persiste. Vai ao teatro mesmo sabendo que não vai ver coisa boa.

B.H. – Pois é, eu vou. O que vou fazer? Eu vou.

Existe uma crítica, em relação à sua crítica, de que ela seria personalista e sem abertura para o que se faz hoje, nos grupos mais novos.

B.H. – Eu tenho ido ver os jovens o mais que posso. E a gente pega cada rabo de foguete. Mas uma coisa que estou cansada e ultimamente não tenho ido ver são monólogos. Porque não aguento mais. Monólogo é uma coisa horrenda! O pior é que escrevem, dirigem e interpretam! Você não sabe o que acontece. É um negócio assustador.

Mas é o contrário: eu procuro ver peças de jovens, porque acho que isso é importante. No momento, você está tendo um processo de dramaturgia que é semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos na década de 30. De repente apareceu uma linguagem americana, o cotidiano invadiu. Há uma quantidade muito grande de autores, não dá para ver todos. E nisso tudo é claro que vai haver muita bananeira de um cacho só. Porque escrever uma peça é bom, mas um Guarnieri é outra coisa, ter o fôlego para continuar a escrever. Que bom que tem muita gente escrevendo, mas é preciso ver quem vai ter força para continuar. O importante é ter gente de fôlego.

Você também continua ensinando Shakespeare?

B.H. – Eu ainda tenho um grupo que vem aqui toda semana estudar Shakespeare. É ótimo, a gente se diverte, lê as peças, relê. Noutro dia, para variar, lemos Molière e Tchecov. O quanto eu posso transmitir… Qualquer pessoa que conseguiu estudar tem obrigação de passar adiante. Nesses encontros tem psicóloga, tem aluno de teatro. Agora são dez, que variam. E é bom porque eles dialogam. Eu faço eles lerem as peças.

No ano passado foi lançado o filme “Anonymous”, dizendo que Shakespeare não escreveu Shakespeare.

B.H. – Eu me lembro que muito tempo atrás, 40, 50 anos, saiu num jornal que Shakespeare era, na realidade, um espião belga. [risos] O que eu vou fazer? As pessoas gostam de dizer bobagem.

Mas nos últimos anos muito da discussão sobre Shakespeare se deu por conta da chamada questão da autoria.

B.H. – Eu acho que se, enquanto ele era vivo, ninguém duvidava de que fosse o autor, para quê? A primeira vez em que se discutiu o assunto ele estava morto havia 150 anos. Aliás, saiu uma coisa que parece que prova que ele realmente ensinou. Eu sempre acreditei nisso, que quando jovem ele tinha sido mestre-escola. Havia a questão de uma família que o contratou para ensinar os filhos. Mas acho que é irrelevante ficar… Eu acho que foi ele, pronto. Se quando ele nasceu alguém baixasse e dissesse, “William vai ser o autor mais famoso no mundo”, é claro que a família iria tomar nota diariamente do que ele fazia. Mas não avisaram… Ele viveu como qualquer outra pessoa.

Barbara, como é ter 90 anos?

B.H. – É um horror!

Mas você não pára. Está lançando um livro daqui a um mês.

B.H. – É, mas eu entreguei há um ano. Esse livro é produto de todos esses anos ensinando história do teatro. De repente vi que tinha tal acervo, de notas, cadernos, conferências… Você não tem um panorama teatral da Grécia até hoje, moderno, em língua portuguesa. Você tem traduzido. Em inglês e francês tem pilhas. Então, é um panorama, sempre com a ideia básica de que o teatro reflete a sociedade. No teatro você tem o melhor documentário do Ocidente que é possível, porque reflete o que estava acontecendo. O teatro de Molière, de Racine, é diferente do de Shakespeare porque o governo francês do rei absoluto é diferente do reinado da Elizabeth. Então você tem outra dramaturgia, que depois vai se transformar com a Revolução Francesa.

Voltando um pouco, o que é ter 90 anos?

B.H. – [pausa] É frequentemente parar e pensar, “meu Deus, eu vi tanta coisa mudar”. Quando penso como as coisas eram… Se pensar que a primeira vez em que houve voo comercial do Brasil para a Europa foi em 1947 e que, em 1968, o homem estava na Lula. É o que falo de mudança. Meus pais foram para a Europa num Zeppelin, em 1935, e de repente em 1947 tem o avião. As soluções mudaram, a maneira de ver as coisas, a roupa, tudo muda. Mas me incomoda muito, hoje, a falta de curiosidade sobre o que aconteceu. As pessoas só querem hoje, hoje, sem saber o que veio antes. Isso é muito empobrecedor. É muito empobrecedor não querer conhecer o passado.

Mas o que é ter 90 anos? O [Clement] Attlee, primeiro-ministro da Inglaterra, quando fez 80, perguntaram o que achava e ele disse, “De qualquer modo, é melhor do que a alternativa”. [risos] Eu não sei se é melhor, mas é mais agitado do que a alternativa. [risos] Eu sou fã do talento humano. Eu nasci para ser público. Eu adoro ver uma coisa boa. Vejo em esporte, vejo em arte. Adoro ver vôlei, fico tarada. Tênis: ver o Federer jogar é uma obra de arte. Coitado, agora ele envelheceu e está perdendo tudo. [risos] Mas eu acho que sou uma espectadora nata. Não tenho o talento criador, para inventar isso, inventar aquilo, criar. Infelizmente, não.

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Nelson de Sá, da Folha de S.Paulo