Quem se debruça sobre um livro de história inicialmente concentra sua atenção na trama dos acontecimentos narrados –e só lentamente toma consciência de que o próprio relato também é um produto histórico, sujeito às limitações e convicções do autor.
Todo o trabalho intelectual de compor uma sequência verossímil de fatos, eliminando as versões indesejadas, desaparece do horizonte do leitor.
Em “Garibaldi na América do Sul: o mito do gaúcho”, Gianni Carta reconstitui cuidadosamente essa pré-história da história e mostra que o líder da unificação italiana soube usar a mídia para se tornar a “encarnação mais perfeita e duradoura do verdadeiro herói romântico”.
Ao voltar para a Europa em 1848, após 13 anos lutando na América do Sul, Giuseppe Garibaldi (1807-1882) posava para pintores e fotógrafos europeus com trajes gaúchos –um poncho e uma túnica vermelha. Curiosamente, o presidente da Argentina Bartolomé Mitre (1821-1906) observou que o italiano não se vestia assim quando os dois combateram juntos no Uruguai.
Mas adotou esse figurino de caubói para ser percebido na Europa “como um homem anárquico dos pampas”, que nem sempre se sujeitava às regras da política italiana. Tal imagem de destemor e virilidade obteve enorme sucesso num momento em que muitos europeus julgavam que os “italianos tinham se tornado preguiçosos e efeminados”.
Jornalistas
Sua legenda começou graças ao esforço de dois jornalistas italianos que atuavam nos países platinos: Luigi Rossetti e Giovanni Cuneo. Eles faziam vários ajustes nos relatos para polir a imagem de Garibaldi, omitindo erros estratégicos na condução da luta e suas deficiências como disciplinador de soldados.
Os dois trabalhavam em sintonia com o republicano Giuseppe Mazzini (1805-1872). Exilado em Londres, Mazzini divulgava as façanhas de Garibaldi no seu jornal, crente de que havia encontrado no general um líder capaz de derrubar a monarquia de Savoia e unir a Itália.
Garibaldi compreendeu a importância do marketing: recebia artistas com frequência, mudava sua rota para fazer entradas espetaculares em cidades e concedia muitas entrevistas aos jornalistas. Escreveu sua autobiografia e compartilhou o manuscrito com três escritores.
Incentivava a imprensa a acompanhá-lo nas batalhas. Quando invadiu a Sicília em 1860, sua comitiva incluía a jornalista britânica Jessie White Mario e o romancista francês Alexandre Dumas, autor de “Os Três Mosqueteiros” e “O Conde de Monte Cristo”. Dumas propagou as vitórias de Garibaldi e o tornou mundialmente famoso.
Gianni Carta descreve ainda como o mito foi apropriado politicamente tanto pela direita como pela esquerda durante o século 20 e sua reciclagem nas obras de ficção mais recentes –entre as quais a minissérie da Globo “A Casa das Sete Mulheres” (2003).
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Mauricio Puls, da Folha de S.Paulo