Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre a lata de querosene Jacaré

Uma das fundadoras da ONG carioca Meu Rio, Alessandra Orofino citou e interpretou, em matéria na revista piauí [a matéria em questão é de autoria de Claudia Antunes, que entrevistou dois fundadores da ONG Meu Rioque, como outras ONGs, vem se especializando no que chama de “criação de mecanismos para que a população participe das decisões das cidades”. Especificamente nas recentes manifestações, a Meu Rio participou ativamente das ações de rua e prestou informações acerca do movimento à imprensa internacional], a obra Ensaio sobre a Lucidez. Segundo Alessandra, “o enredo (de José Saramago) parte de uma eleição em que todos os votos são brancos. A gente está num momento em que o risco é de todos os votos serem simbolicamente brancos. O risco de as pessoas se darem conta de que todos os espaços de participação pública são de mentira, de que audiência pública não serve para nada e com isso se retirarem do debate” (revista piauí. Pag. 12. 2013).

Orofino se refere a uma crise de representatividade e é esta perspectiva que deu o tom de uma onda que começa com manifestações vinculadas à mobilidade urbana, organizadas e divulgadas pelas redes sociais, sobretudo o Facebook, tendo além destes componentes o fato de serem compostas, ao menos a princípio, por um público jovem e que baseou o movimento no espirito apartidário, elemento que durante as semanas que se seguiram, quando o movimento arregimentou novos participantes, das mais variadas perspectivas ideológicas, suscitou um viés antipartidário.

No amálgama destas questões e com a violência que aparece como componente destas manifestações, elas foram se conformando, demonstrando, durante semanas, que algo de destoante acontece com a representação política e com tradicionais organizações da sociedade.

Viabilizar as demandas

Um descompasso, pois espera-se que a representação partidária tenha a capacidade de sintetizar e criar formas de que a vontade dos representados seja expressa e se concretize. Mesmo que a velocidade, etapas e realizações dentro de um sistema democrático não sejam velozes e plenas, é no fato de perceberem alguma satisfação em suas aspirações que repousa a possibilidade da legitimidade e consenso acerca de governos.

Assim, o partido político e a respectiva representação política, parte fundamental de sua existência e a posterior capacidade dos governos de empreenderem políticas públicas eficazes é que foram postas em questão. Se verdadeiramente partidos não representam, ao menos na perspectiva das massas que foram as ruas, suas vontades, é fato que governos não têm tido a capacidade de gestão para que serviços públicos deixem seus governados minimamente satisfeitos.

As questões que estavam pautando as ruas já são de conhecimento de partidos e governos: mobilidade urbana, reforma política, reforma urbana, saúde pública e outras tantas quantas couberam nos gritos das ruas, de maneira alguma podem ser consideradas novidades. Mas, não basta saber, há de se viabilizar tanto do ponto de vista político como administrativo as demandas da sociedade. E é aí que as coisas se mostram difíceis.

Medidas serão costuradas

Na última semana de junho, foi atribuída ao ex-presidente Lula a frase que apontava como “barbeiragem” as atitudes tomadas pelo governo federal em resposta às reivindicações populares. Desmentidos vieram, e se verdadeira ou não a frase atribuída a Lula, o fato é que a capacidade e vontade de políticos em captar as demandas populares, se já não era grande, no sentido de principalmente encaminhar a vontade dos representados, agora são vinculadas a medidas que partem de uma interpretação da Presidência da República, equipe e alguns iluminados, porventura consultados, do que seja a vontade e as ações passiveis de serem tomadas para amainar a fúria das massas.

Louvável que as ruas tenham despertado políticos e organizações de representação da sociedade, mas as ruas não são uma instância de poder representativa e legitima ao ponto de políticas públicas, por mais justas que sejam as palavras de ordem, serem pautadas somente a partir delas. Esta forma de organizar a vida politica e a representatividade não se sustenta no tempo.

Gramsci [em seu tempo, para análise de outra questão e em outra conjuntura, Gramsci fez a crítica à obra e à perspectiva de Benedetto Croce, tido como revisionista para muitos marxistas. Tanto Croce como Gramsci refletiram sobre Maquiavel e a autonomia da política, também, no âmbito da ciência, mas a afirmação de Gramsci sobre paixão e a política é pertinente quanto à vontade de muitos em negar o partido político nos dias de hoje] interpreta a irracionalidade na política ao se referir à sua interface com a paixão:

“A concepção crociana da política-paixão exclui, partidos, já que não se pode pensar ‘paixão’ organizada e permanente: a paixão permanente é uma condição de orgasmo e de espasmo, que determina incapacidade para agir. Exclui os partidos e exclui todo ‘plano’ de ação concertado antecipadamente” (Gramsci, pag. 25. 2000).

Nesse açodamento, medidas parece que serão costuradas. Após anos vagando pelo Congresso, a reforma política será, pelo que parece, matéria discutida e decidida conjuntamente com os eleitores. E com o mesmo viés, outras virão.

Pouca funcionalidade e morosidade

A necessidade de dar respostas aos acontecimentos não se circunscreveu aos que governam e a parlamentares. Após anos com lideranças circulando em torno do governo federal, fundos de pensão e de suas respectivas carreiras sindicais ou politicas, as representações tradicionais: MST, CUT, UGT, Força Sindical e alguns outros movimentos organizaram manifestações, paralizações, buscando mostrar à sociedade e a suas bases que estão na ativa, apesar do tom anacrônico deste despertar.

Ressaltando que não é privilégio do governo federal a fraqueza da representação política ou a precariedade da administração pública, temos formas de se captar a vontade dos governados e, em seguida, estabelecer uma boa governança, necessitam ser ajustadas ou estabelecidas. Também as formas de organização dentro da sociedade civil necessitam de maneiras mais eficazes de representação, o mais imune possível dos carreiristas que ali transitam em abundância.

Congressos, fóruns, conselhos, planos e coisas do gênero com a participação de sindicatos, associações de luta por moradia, governos, parlamentares, intelectuais e representantes de diversos setores da sociedade existem a mancheia e do ponto de vista de sua institucionalização acabam, não raro, causando uma confusão de instâncias e ações, o que gera a pouca funcionalidade [a questão do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano-SNDU, por exemplo, que prevê planejamento de políticas de saneamento básico, habitação, transporte/mobilidade urbana dentro de uma estruturação que iria se espraiar formando um sistema ordenado em conjunto com união, estados, munícipios e respectivas organizações sociais, que vem sendo gestado por iniciativa do Ministério das Cidades há anos, não obteve ainda sucesso no sentido de organizar uma estrutura política capaz de dar conta de sua ideia original de empoderar os setores envolvidos e empreender seu planejamento e atuações. Sobre o SNDU e seu histórico consultar a 5ª Conferência das Cidades em http://www.cidades.gov.br/5conferencia/], a sobreposição de propostas de ação e representatividade e a morosidade para implantação.

Cultura política e necessidades da democracia

Além da questão da pouca funcionalidade do que já existe, a receita para participação de organizações influindo e se possível deliberando acerca de planejamento e políticas públicas não é fácil. Questões técnicas concernentes à administração pública e a efetiva representatividade de organizações da sociedade civil são pontos que devem ser levados em consideração, assim como o embate entre um possível empoderamento de organizações da sociedade civil em relação a representação político eleitoral.

No tocante à administração é interessante que se criem ferramentas capazes de monitorar licitações, contratações de obras e serviços, gastos, criando mecanismos efetivos de transparência na administração pública, que em plena era digital são passiveis de serem aperfeiçoados. As organizações da sociedade podem, sim, se dedicar a acompanhar os passos da administração pública no tocante às suas áreas de atuação e, em alguns casos, já o fazem.

Em suma, esse grau de empoderamento e representação deve ser realmente discutido, sem que se negue a participação das organizações, mas sabendo-se que existem as instâncias de atuação técnico/burocrática e a do político e seu partido. A representação política exercida pelo parlamentar e dos portadores de cargos executivos devem exercer seus papeis sendo capazes de captar a vontade dos que representam, encaminhando as soluções possíveis. Para tanto a política deve ser muito menos calcada nas demandas privadas e mais na de seus representados, num embate constante entre a cultura política brasileira e as necessidades da democracia.

O jeito brasileiro de fazer política

Devem-se criar formas de dialogo entre político e a sociedade, e a tecnologia digital é, também, um dos caminhos para ampliação da capacidade de consulta à população e acompanhamento de mandatos parlamentares e gestões. Entretanto, nenhuma ampliação qualitativa da representação popular adiantará aos governos se não for dada a devida atenção a restruturação da administração pública. Pois, parte essencial da satisfação popular vincula-se a questão dos serviços públicos. Não há incremento a políticas públicas sem que a devida atenção a necessária reforma e incremento aos setores técnicos/burocráticos do estado brasileiro.

A etapa decisória do âmbito da politica e a necessária rearticulação da representação não bastam. Faz-se necessário um Estado eficiente e eficaz e na medida do possível imune aos interesses pessoais do politico para que seja capaz de realizar politicas públicas.

Assim, instrumentos como as corregedorias, tribunais de contas, devem ser revistos, no sentido de darem espaço, em casos como das empresas controladas pelo Estado, a auditorias independentes que, ao menos em tese, se livrariam do assédio e influência que políticos exercem sobre organizações desta natureza. Representação política, suas formas de controle e capacidade de gestão da máquina pública: eis o óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues, mas que formam um conjunto de questões que vão de encontro ao jeito brasileiro de fazer política.

Bibliografia

BIANCHI, Álvaro. Croce, Gramsci e a “Autonomia da Política”. Revista Sociologia e Política nº 29. Curitiba – Paraná. Novembro de 2007

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro – RJ. Civilização Brasileira. 2000

Revista piauí nº 82. Rio de Janeiro – RJ. Julho 2013

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Marcelo Barbosa Câmara é doutor em Ciências Sociais (Política) pela PUC/SP