O programa Canal Livre, da TV Terra, apresentado na sexta-feira (23/8) à noite e reapresentado sábado, às 6h, pelo jornalista Boris Casoy, com a participação dos jornalistas Fernando Mitre e Fernando Gabeira, tendo como entrevistado o diretor do Hospital do Câncer de Barreto (SP) Henrique Prata, foi um raro momento de lucidez na TV paga brasileira e a exibição de acertos e equívocos da política nacional de saúde.
Com a nova fase de liberdade de expressão da mídia brasileira e as alternativas de autonomia criadas pós-internet após as manifestações de junho, a própria mídia tradicional pôs as barbas de molho. O brasileiro aprendeu a clicar o “desliga/muda canal”. Resultado: falou besteira, perdeu audiência. Talvez por isso, como a bola da vez é a mídia televisiva, apresentadores e debatedores ficam atentos ao medidor de audiência o tempo todo.
Está na Constituição: a saúde é dever do Estado. Como admitir que o Estado possua um orçamento tão volumoso para a saúde e em mais da metade dos 5.556 municípios não exista sequer um médico permanente? Após a Constituinte de 1988, o governo brasileiro só descobriu isso 25 anos depois porque o povo foi para as ruas reclamar. O que revela uma dessintonia entre governo e população.
O socialismo e a América Latina
Daí, sem consultar a própria sociedade, como uma herança da ditadura de 1964, o governo do PT resolveu impor o programa Mais Médicos para resolver o problema. Foi quando se percebeu, concretamente, a falta de um elo nessa corrente entre governo, Congresso e a população. Não há corrente forte com elo fraco ou inexistente. Essa assertiva popular consagrada foi confirmada pelas ruas: gastam-se milhões com a manutenção de Câmaras de vereadores e prefeituras que seriam o elo entre o Congresso e a população. A defasagem entre o que a população quer e o que defendem nossos políticos leva à conclusão de que eles cuidam mais do interesse privado do que público.
Há todo um cipoal de suspeição oculta em relação ao amplo noticiário da mídia tradicional sobre o convênio proposto pelo governo brasileiro com Cuba. Ainda está presente o questionamento oficial ou não, científico ou amador, sério ou jocoso, responsável ou indecente, sobre o socialismo cubano à la Fidel Castro.
Ao arregimentar a população no começo da década de 1950 contra a sangrenta ditadura direitista de Batista, tendo ao seu lado o ultraidealista Che Guevara, Castro se meteu entre dois polos ideologicamente opostos na política mundial: o Ocidente, tendo os Estados Unidos à frente, e o Oriente, liderado pela União das Repúblicas Soviéticas – URSS. Um lado representava o capitalismo e o outro o socialismo. Como optou pelo socialismo, já que Batista estava atrelado aos EUA – até 1950, os norte-americanos gostavam de tirar férias em Havana–, Castro inicialmente passou a contar com a ajuda financeira, material e bélica da URSS, a cuja direção prometia espalhar o socialismo pela América Latina.
Um socialismo de miséria
Até que, com a crescente polarização política e econômica do pós-guerra (de 45) e o esvaziamento político e econômico da URSS da crise instalada após a Queda do Muro de Berlim, e finalmente a extinção da URSS e a fragmentação do bloco de Estados que a sustentavam com Gorbachev, o projeto político de Castro afundou por completo.
E o sonho de um Estado socialista se transformou num pesadelo caracterizado principalmente pelo racionamento de tudo, a começar por alimentos, e a liberdade de expressão simplesmente deixou de existir: a era de ouro de Castro em Cuba foi uma ditadura cruel. Com prisões abarrotadas de presos políticos, seu vizinho americano tornou-se o país de maior tirania com Cuba ao liderar um boicote econômico mundial (de 1961 até hoje) que matou o regime castrista de asfixia.
Cabe aqui uma pergunta: Castro conseguiu fazer de Cuba um país socialista? Resposta: não. Responderei adiante, a não ser que o leitor se contente com essa resposta: sim. Mas um socialismo de miséria, de pobreza, de fome. No socialismo científico imaginado por Karl Marx haveria capital, produção, máquinas e equipamentos e mão de obra. Não há lucro sem esses elementos. Em cima de miséria só há tirania, mágoas e ressentimentos.
Profissionais não confiáveis
Em contrapartida, o regime de Castro disseminou no seu sistema educacional valores como a solidariedade e igualdade e um embrionário sistema de saúde pública com base em pesquisas de ervas comuns na ilha. Nessa área, desenvolveu o tratamento do vitiligo (que se dá com a perda de uma substancia que controla a cor da pele) ficando a pele branca. Com a medicação cubana, a cor é restabelecida. Um trabalho científico louvável e digno de um prêmio Nobel de Medicina.
Com o boicote econômico contínuo a Cuba, o antigo sonho de Castro-Che Guevara morreu. O governo cubano, hoje liderado pelo irmão Raúl Castro, tenta ressuscitar a solidariedade mundial transformando em rotina o envio de médicos, através da OPA -Organização Panamericana de Saúde, para participarem de missões especiais, como essa que está chegando ao Brasil, com a previsão de o Mais Médicos absorver 4 mil cubanos nos municípios brasileiros mais carentes.
Desde o bloqueio internacional a Cuba, para atuar no Brasil os médicos cubanos precisam ter seus diplomas revalidados. Ou seja, para registrar o diploma o profissional nos Conselhos Regionais de Medicina têm que se submeter a exames nas organizações médicas que congregam os profissionais de medicina no país, como a Associação Brasileira de Medicina. Como Cuba não tem excelência mundial em medicina, as entidades médicas brasileiras estão cobertas de argumentos para questionar a qualidade profissional deles. Afinal, eles acham que pior do que não ter médico, é ter à disposição um profissional em quem o paciente não confia. Ou que pode colocar em risco a vida dele.
Ação de inconstitucionalidade
Para a grande maioria de brasileiros jovens, de 15 a 20 anos, seguramente é a primeira vez que estão ouvindo falar em Cuba e Fidel Castro. Por isso, o noticiário nacional sobre a chegada dos médicos cubanos e as reações dos médicos brasileiros cria um cenário de equívocos e desinformação como se os médicos brasileiros estivessem impregnados de desamor aos seus pacientes e fossem tão horrorosos ao ponto de só atender aos ricos ou pessoas capazes de pagar uma consulta de R$ 250 ou de R$ 550,00.
A pregação de solidariedade feita pelos cubanos os coloca como adversários, e não como aliados dos médicos brasileiros. Esse confronto pode até beneficiar o governo na sua quebra-de-braço com a categoria, mas deverá ser prejudicial aos pacientes e sua relação com os médicos cubanos.
É nesse cenário que o Supremo Tribunal Federal vai apreciar proximamente uma ação de inconstitucionalidade encaminhada pela Associação Brasileira de Medicina contra o Mais Médicos.
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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor