Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entrevistas imaginárias

Como todo jornalista experiente – um dos esteios do velho Jornal do Brasil – Luiz Orlando Carneiro fez entrevistas a vida toda. Mas um dia lhe veio a ideia da “entrevista imaginária”, não presencial, como se diria hoje, em que você faz perguntas cujas respostas já estão na obra deste ou daquele escritor. É um exercício alado, que exige muita imaginação – e muito conhecimento do personagem que vai ser alvo das perguntas. Que Luiz Orlando foi bem sucedido é o que você vai constatar lendo esse pequeno/grande livro em que desfilam à nossa frente, em uma gloriosa correnteza, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Mário de Andrade, Chesterton, Hemingway e outros. Não é só um jogo: com verdadeiro faro de repórter, Luiz Orlando vai em busca da verdade de cada autor – ou das respostas que eles podem ter ou não ter para os enigmas da vida. Tudo mergulhado em uma espécie de halo poético que tira do diálogo qualquer marca de vulgaridade.

Todo grande autor vive encerrado num mistério que o leitor só pode perfurar quando o próprio ator dá essa licença. Cecília Meireles, por exemplo, questionada sobre as asperezas da vida, responde: “A vida vai depressa e devagar. Mas, a todo momento, penso que posso acabar… Quem veio para esta vida tem de ir sempre de aventura: uma vez para a alegria, três vezes para a amargura… Porque a vida, a vida, a vida só é possível reinventada”. Toda uma lição de “viver poético”!

Menos lírica é a visão de um Drummond: indagado sobre a presença (ou a ausência) de Deus, ele responde com o espírito cáustico que sempre foi uma das partes (mas não todas) do seu fazer poético: “No mais alto ramo Deus está pousado com uma garra apenas e fita o mundo. Do mais alto ramo desfere voo e sai por aí bicando as coisas, indiferente às coisas bicadas. Deus rumina o que fazer, acaso. Mais um terremoto? De que proporções? Que margem ceder ao capricho do homem? Vai nascer um artista? Nascerão idiotas?” Ducha fria de um espírito afinado com o modernismo. E se a vida são desilusões, o que resta? Ele responde: “Duas riquezas: Minas e o vocábulo. Ir de uma a outra, recolhendo o fubá, o ferro, o substantivo, o som”. Arte poética do artista superior que mandava os aprendizes mergulharem no reino subterrâneo das palavras, antes de quererem escrever versos bonitos.

Jorge Luís Borges sempre foi uma velha paixão de Luiz Orlando, desde os tempos em que o grande argentino impôs-se à nossa admiração. Não surpreende que as perguntas, aqui, sejam feitas com cuidado especial, e pontaria certeira. Solicitado a definir uma estética, responde o ilustre escritor: “Não possuo uma estética. O tempo me ensinou algumas astúcias: evitar os sinônimos, que têm a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias. Evitar hispanismos, argentinismos, arcaísmos e neologismos. Preferir as palavras habituais às palavras assombrosas; simular pequenas incertezas, já que se a realidade é precisa, a memória não o é. Narrar os fatos (isto aprendi em Kipling e nas sagas da Islândia) como se não os entendesse completamente…” E por aí vai essa lição de um verdadeiro clássico.

Eu poderia ir citando um por um, descortinando pérolas que estão espalhadas por toda parte; mas assim tiraria de você, leitor, o prazer da descoberta. Sendo assim, escolho só mais um: o fascinante, o inesgotável Chesterton, que Borges admirava e que Luiz Orlando cultivou a vida inteira como um amigo. A pergunta era: qual a sua visão da natureza? E a resposta não podia ser mais brilhante: “Apenas o sobrenatural permite uma visão sã da natureza. A essência de todo o panteísmo, do evolucionismo e da moderna religião cósmica está nesta afirmação: a natureza é nossa mãe. Infelizmente, se olhardes a natureza como mãe, descobrireis que ela é uma madrasta. O ponto principal do cristianismo era este: a natureza não é nossa mãe, a natureza é nossa irmã. Podemos orgulhar-nos de sua beleza, já que temos o mesmo pai. Mas ela não tem nenhuma autoridade sobre nós. Isso dá ao prazer tipicamente cristão na terra um toque de leveza que é quase frivolidade. A natureza foi uma mãe solene para os adoradores de Isis e Cibele. A natureza foi uma mãe solene para Wordsworth ou para Emerson. Mas a natureza não é solene para são Francisco de Assis. Para ele, a natureza é uma irmã, e, até, uma irmã mais nova: uma pequena e saltitante irmã, de quem nos rimos e a quem amamos.

***

Do autor Luiz Orlando Carneiro sobre o livro

Nestas Entrevistas Imaginárias, as perguntas são posteriores às respostas. As respostas foram colhidas nas obras de 13 escritores – dos quais 10 poetas – que li e reli, naqueles tempos em que muitos leitores – ávidos como eu – sublinhavam frases ou trechos que consideravam particularmente memoráveis. Nas “entrevistas”, guardadas as devidas proporções, procurei manter algo do “estilo” e também do “ritmo” daquelas famosas entrevistas da Paris Review. Só que, neste livrinho, todas as “respostas” já estavam nos seus poemas, contos ou escritos confessionais. A escolha dos “entrevistados” não seguiu nenhum roteiro predeterminado, até por que Hemingway nada tem a ver com Chesterton, nem Jorge Luis Borges com Fernando Pessoa. Nem Mário de Andrade com Cecília Meireles. São escritores que me impressionaram, de um modo ou de outro, em fases diversas de minhas leituras erráticas, que não dispensavam o uso de lápis ou caneta.

Sobre o autor

Luiz Orlando Carneiro nasceu no dia 30 de outubro de 1938, no Rio de Janeiro. Cursou o ensino primário, médio e o científico no Colégio de São Bento (RJ). Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado da Guanabara (UEG, atual UERJ), em 1963. Ingressou no Jornal do Brasilcomo repórter-estagiário em outubro de 1958. Foi admitido em janeiro de 1959. Cobriu o Itamaraty (política externa) de agosto de 1959 a meados de 1963, quando assumiu o cargo de subchefe de Reportagem. Foi chefe de Reportagem (1964-1969). Editor de Notícias (1969-1974), chefe da Redação (1974-1979), chefe da Sucursal do JB em Brasília e diretor-regional do JB (1979-1992), além de repórter especial, editorialista e colunista (“Informe JB”) especializado em assuntos jurídicos e cobertura do Supremo Tribunal Federal. Mantém, há anos, coluna semanal sobre jazz no Jornal do Brasil (atualmente JBonline). É autor dos seguintes livros: Jazz: Uma Introdução (Artenova, 1982); Obras-Primas do Jazz (Zahar, 1986); Elas Também Tocam Jazz (Zahar, 1989) e Guia de Jazz em CD (Zahar, 2000; 2002, 2ª edição). É autor dos verbetes sobre jazz das enciclopédias Delta-Larrousse e Mirador.

******

Luiz Paulo Horta (1943-2013), jornalista, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras