Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folhas secas

Foi preciso Glenn Greenwald se apaixonar por um carioca para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) desenvolver um plano de proteção para os telefonemas do Palácio do Planalto. Se o formidável advogado e jornalista não tivesse, num impulso, comprado uma passagem de férias, se em vez de ir nadar em Ipanema tivesse preferido as águas do Lago Rawal, em Islamabad, quem sabe, estaria dando entrevistas em urdu macarrônico. E talvez desse prioridade, no momento, às revelações feitas por Edward Snowden sobre as atividades da NSA na capital do Paquistão.

Ficamos sabendo que o novo sistema de criptografia da Abin que vai permitir que a presidente Dilma continue se desculpando com Evo Morales é made in Brazil. Não sei como será a “explicação por escrito” que Barack Obama, devidamente colocado no seu lugar por Lula, Dilma e outros emissários da usina de indignação oportuna, vai dar quando vencer o prazo que recebeu para fazer o dever de casa. Obama está preocupado com a NSA no Brasil nesta segunda-feira como estou preocupada com o time de hóquei da liga amadora de Manitoba. Ele não consegue articular a própria indignação o bastante para convencer os americanos de que é preciso atacar a Síria. Se há um fundo do poço na sua presidência, ele está sendo atingido enquanto escrevo.

Então, sejamos realistas. Os imigrantes sem documentos à espera da prometida reforma já perceberam que perderam o lugar na frente da fila. A Síria vai consumir Obama e todas as suas siglas de inteligência no momento porque o que está em jogo, em Washington, é muito mais do que impedir uma nova safra de vídeos horrendos de crianças espumando pela boca. O destino da presidência do homem que se elegeu para acabar com guerras está na balança por causa de uma guerra que ele não quer começar e para a qual caminha como se estivesse na prancha de um navio, sob as ordens de piratas para pular no mar.

Solidão crescente

Mas o novo pântano americano no Oriente Médio não nos impede de continuar martelando o assunto da espionagem com ajuda de Greenwald no Guardian e colegas nas redações do New York Times, Globo, Washington Post, Pro Publica e Der Spiegel. A cada nova revelação sobre o frankenstein de vigilância exposto por Snowden, podemos ir compondo o cenário do sigilo inaceitável, da violação de direitos que os violadores diziam considerar sagrados desde 1787.

Um possível ataque à Síria pode tornar o governo americano temporariamente mais zeloso do aparato de vigilância, à espera de inevitáveis reações em forma de atentados terroristas. Mas é difícil imaginar o próximo presidente, seja ele um republicano, seja ela uma Hillary, conseguindo manter intacto o status quo da bandalheira secreta. Já podemos agradecer, por antecipação, ao trio Snowden/Poitras/Greenwald por ter tornado impossível para os legisladores americanos continuar carimbando sem ler qualquer exigência exorbitante do aparato de segurança.

Quanto à preocupação em Brasília sobre a famigerada “porta dos fundos”, a chance que a NSA tem de vencer as barreiras de criptografia, graças ao monopólio americano de cabos de transmissão e à cumplicidade dos conglomerados digitais americanos, é possível que a farra esteja para acabar. Os mesmo conglomerados não gostaram de ser flagrados na cama do motel com agentes federais nada sexy. Eles preferem nos espionar para vender anúncios e sabem que o público vai cobrar mais transparência para continuar a ser tungado. As portas dos fundos serão mais expostas graças a softwares de open source. Jeff Jarvis, professor da New York University, diz que a essência do caso Snowden não será a ameaça do governo à nossa privacidade, mas à perda do sigilo para os governos.

O contrato social da internet foi traído não só por governos, mas também pela indústria digital. O outono do Hemisfério Norte começa no dia 22/9. Há quem acredite que será uma estação de solidão crescente para o patriarcado das sombras.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York