Voltou-se a discutir, nestas últimas semanas, a legislação brasileira sobre biografias. O Projeto de Lei 393/2011, do deputado Newton Lima (PT-SP), propõe uma mudança no artigo 20 do Código Civil, para que biografias não precisem de autorização quando seus personagens tiverem “notoriedade pública”. Tenho observado que a perspectiva predominante nessa discussão opõe o interesse coletivo à sanha gananciosa dos “herdeiros” – mas esses interesses não são os únicos em jogo, nem tampouco é essa a oposição fundamental da questão, e finalmente os meios para se evitarem abusos e fortalecer uma free culture passam por outros caminhos.
A oposição fundamental em jogo nesse problema é aquela entre o público e o privado, isto é, o coletivo e o indivíduo. O art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988 garante serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Sou convictamente a favor desse princípio. Cada sujeito deve ter o direito de decidir sobre o que de sua vida tornará público e o que dela pertencerá ao domínio privado. Sobre esta última dimensão, só o sujeito deve ter poder – o Estado, advogando o interesse da coletividade, não deve poder cruzar essa fronteira.
Muitos criticam esse princípio opondo-lhe o art. 220, § 2º, da Constituição, que proíbe qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Mas a “censura” em questão não incide sobre nenhum desses âmbitos; o político é o domínio público por definição, e o ideológico e o artístico referem-se ao direito que cada sujeito tem de manifestar suas próprias ideias, formas ou afetos. É fundamentalmente diverso o pleiteado direito de tornar públicos os fatos (na verdade, a interpretação deles) que um outro sujeito determinou privados.
Infantilização cultural
Pensando em âmbito geral, as noções de público e privado, bem como as relações entre eles, foram desestabilizadas pela esfera digital. É muito importante estabelecer princípios éticos que orientem redefinições da legislação e das condutas pessoais cotidianas (nas redes sociais, por exemplo, muitas pessoas demonstram discernimento nulo quanto aos limites entre público e privado). Alguns dos episódios mais importantes da política mundial recente dizem respeito a esse problema. Whistleblowers, como Assange e Snowden, pretendem tornar públicos documentos e informações velados que dizem respeito ao interesse público (os Estados, por sua vez, reivindicam para si um estatuto, autocontraditório, de instâncias privadas – ou secretas, que seria o público mantido privado por interesses estratégicos). Já o Estado dos EUA mantém um programa avançado de espionagem de seus cidadãos e de cidadãos estrangeiros, violando suas intimidades privadas em nome do interesse público (na verdade, interesse do Estado).
Note-se a contradição entre protestar contra essa violação por parte do Estado e, ao mesmo tempo, defender, no caso das biografias, a violação da intimidade de um indivíduo em nome do interesse coletivo. Embora, é claro, as razões sejam diversas, o princípio é o mesmo.
Argumenta-se que indivíduos cujas trajetórias intervieram na história coletiva perdem, por isso, o direito ao privado. Mas essa intervenção se dá por meio de suas obras, isto é, da parte de suas vidas que dedicaram à esfera pública. É em boa medida hipócrita o argumento de que a proibição de biografias não autorizadas impede a construção da memória cultural e social do Brasil. Pode-se construir essa memória valendo-se apenas de obras, informações e documentos públicos. Se não se o faz como se deveria, talvez seja pela infantilização cultural que necessita tanto do privado (embora sejam práticas diversas, um mesmo contexto infantilizador abrange histórias pessoais, reality shows e a onipresente lógica das celebridades: esses últimos são pura esfera privada).
Público e o privado
Não é verdade, portanto, que a oposição decisiva seja aquela entre herdeiros e a coletividade. O jogo de interesses é múltiplo e inclui ainda entidades comerciais, como editoras. Não se trata tampouco de negar que as histórias de vida se cruzam com a História, ajudando a esclarecê-la – mas o princípio que deve prevalecer, neste caso, é o da soberania do indivíduo sobre a dimensão privada de sua vida.
Para se produzir uma free culture (magistralmente estudada e defendida por Lawrence Lessig), deve-se ampliar a esfera pública, e não invadir a privada. Deve-se, por exemplo, reduzir o prazo de copyrights (limitando assim eventuais abusos de herdeiros), estimular licenças flexíveis como os Creative Commons, aumentar o campo do fair use, reconhecer as apropriações criativas de obras sob copyright etc. Mas sem perder de vista a diferença fundamental entre o público e o privado.
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Francisco Bosco é colunista do Globo