“A realidade que podemos descrever nunca é a realidade em si.” (Werner Heisenberg)
A palavra de condão hoje para se falar de governança da internet é multistakeholderism – numa tradução simplista, uma governança multiparticipativa. Mas nada há de muito simples na discussão sobre governança da internet. A impossibilidade de englobar a rede nas estruturas atuais de legislação local, nacional e internacional, nos tratados que, à maneira do das telecomunicações, se propõem a mediar negócios, transações e serviços entre os detentores do poder, e mesmo os limites das nações, é patente.
Numa discussão no Conselho Europeu, em Estrasburgo, há dois anos, ficou clara a dificuldade que há quando se discutem leis globais para a rede. O que surgiu como alternativa promissora foi a aprovação de princípios, intenções e boas práticas, a chamada soft law, em lugar da legislação tradicional, a hard law. Entre as inúmeras vantagens que uma declaração de princípios traz está, inclusive, a janela de observação e de oportunidade para teste de seus resultados e eventuais correções de curso. Obtidos os resultados que se queriam, pode-se pensar em legislação tradicional e tratados adicionais.
O modelo que Estrasburgo apontava era o que o Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil já havia delineado em 2009, com seu decálogo de princípios para a internet. Éramos citados como paradigma da área, obra de uma comissão multiparticipativa, sem poder regulador, com a missão de orientar, estimular e proteger o crescimento da internet no País de forma aberta, livre e socialmente adequada.
Esse protagonismo, já conseguido em Vilna (Letônia) durante a reunião do Internet Governance Forum de 2010, resultou no texto do Marco Civil, que arrasta sua cruz pelo Legislativo brasileiro há dois anos. O Marco Civil é a soft law, a declaração de princípios de que a internet no Brasil necessita para conservar a neutralidade, mostrar os riscos que corre a privacidade do cidadão e propiciar a segurança jurídica necessária para os que produzem conteúdo e serviços na rede, ao definir o espectro de sua responsabilização.
Limites de contexto
Os riscos que estamos correndo, entretanto, não se limitam aos entraves reais ou estratégicos que são colocados na “corrida de obstáculos” do Marco Civil pelos que a ele se opõem. Agora, está-se questionando a própria coordenação de recursos centrais da internet no País, que sempre foi levada a cabo pelo CGI via Núcleo de Informação e Comunicação (NIC). Há uma grita por regulação, exatamente por parte de setores já regulados, como é o caso das operadoras de telecomunicações. Num cenário internacional em que o Brasil tem obtido importantes dividendos pela forma como se tem conduzido no que diz respeito à governança da internet, vemos ressurgir a “nostalgia” dos que preferem os oligopólios, transformando-se em reação ao que a internet traz e ao que já se conseguiu.
A primeira vítima do processo é o próprio Marco Civil. Em leituras sistematicamente enviesadas, insiste-se na visão limitada e incorreta de que a neutralidade na rede viria a ser uma “limitante” nas opções de negócio existentes. Esquecem-se princípios e traz-se à cena o modelo econômico, como se na declaração de “direitos humanos”, por exemplo, devessem constar detalhes como preços de diferentes alimentos ou tipos de vestuários a usar. Por outro lado, aproveitando-se acontecimentos recentes de extensas violações da privacidade, adições de última hora são propostas ao Marco Civil, ignorando a essência da rede, a sua extensão mundial, a ausência de fronteiras e de localidade nos seus serviços.
É clara a importância de que os conteúdos mais frequentados pelos brasileiros se movam para dentro do País. Isso melhora a balança internacional de custos de telecomunicações, o tempo de resposta e uma melhor experiência da rede para os usuários, certamente beneficiando a todos. Não é por outro motivo que produtores de conteúdo, de textos, de filmes, têm copiado suas bases de dados para servidores dentro do País e procuram interligar-se a pelo menos um dos nossos 23 pontos de troca de tráfego, mantidos pelo CGI via NIC. Porém não há como equilibrar totalmente nosso balanço em telecomunicações porque, por maior que o Brasil seja, o mundo que resta fora do País é maior ainda. É inelutável: há mais conteúdo fora do Brasil a ser acessado por brasileiros do que conteúdo dentro do País acessado por estrangeiros.
Privacidade – que é tema de outro e importante projeto legislativo em trâmite – também é tratada como “princípio” no Marco Civil. Definem-se limites de contexto em que dados pessoais poderiam ser colhidos e a necessidade de obter expresso consentimento do usuário para seu eventual uso. Riscos eventuais a que estamos expostos não devem ser usados como argumento para que a privacidade dos cidadãos na rede seja violada. Quem abre mão da privacidade em nome da segurança acaba sem ambas.
Marco Civil
Finalmente, um rápido exame de decisões judiciais sobre responsabilização na rede deixa claro que há insegurança. Um jovem empreendedor nacional que queira criar um novo serviço na internet, uma nova rede social, um programa de relacionamento expõe-se a riscos jurídicos não muito claros, podendo eventualmente ser responsabilizado por ações indevidas de seus usuários. Lembremo-nos de que, por essa interpretação, por exemplo, uma carta anônima recebida por alguém na sua caixa de correio tradicional poderia causar a responsabilização dos Correios, ou do próprio carteiro que a entregou: o mensageiro punido pelo conteúdo da mensagem.
Certamente não é o cenário que queremos para a internet no País. A aprovação do Marco Civil preserva conquistas e previne deformações. Que seja aprovado sem delongas!
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Demi Getschko é engenheiro e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil