Não será nenhum fim do mundo o provável acolhimento dos tais embargos infringentes, considerando que o voto de desempate do ministro Celso de Mello é tido como caçapa cantada, de acordo com posição anteriormente manifestada. Afinal, trata-se apenas de uma volta à dura realidade do país da impunidade, em que a Justiça, não bastassem as distorções que todos conhecem, está à mercê de chicaneiros investidos de juízes, nas palavras do próprio presidente do STF Joaquim Barbosa, a propósito das manobras diversionistas do colega Ricardo Lewandowski.
Embora com a adesão de muitas opiniões respeitáveis, a aceitação da tese dos embargos equivale a um soco no estômago da sociedade, que via na punição dos mensaleiros uma nova postura da justiça em relação aos chamados crimes do colarinho branco, tradicionalmente infensos às leis. Ainda que discutíveis à luz do rebotalho jurídico vigente no país, em parte por conta da própria leniência da Suprema Corte, que não só mantém como compactua com enxertos que apenas tolhem e dificultam a aplicação das leis, como no presente caso, o fato é que boa parte dos réus do mensalão já comemora a perspectiva de ter suas penas abrandadas ou até mesmo suprimidas, graças à postergação sine die da apreciação dos recursos. O que a essa altura do campeonato soa como um autêntico desaforo, convenhamos.
Como não poderia deixar de ser, a mídia em geral não ficou imune a esse estado de espírito, esperneando ou vibrando com uma reviravolta que reflete com exatidão a polarização que permeia as discussões políticas no país. Embora sobejamente conhecidas, poucas vezes se viu manifestações tão explícitas do radicalismo que toma conta das duas correntes, com os semanários Veja e CartaCapital encabeçando as reações mais extremadas. Veja, de longe a mais belicosa – o que também não é surpresa para ninguém – não se limitou a estampar o assunto na capa, apelando para uma esdrúxula comparação entre o dilema do ministro Celso Melo e o do personagem bíblico Pôncio Pilatos. “Não pode lavar as mãos, mas corre o risco de ser crucificado”, cravou, com a sutileza de um macaco em loja de cristais.
Corrupção e escândalos
Enquanto a guarda pretoriana de Veja passou a semana botando pilha em dissensões que reduziram a Suprema Corte à estatura de uma reles discussão de condomínio, CartaCapital, enfim, animou-se a sair da linha flegmática dos últimos tempos para aderir à causa dos mensaleiros, requentando a tese de que o julgamento está sendo condicionado pela opinião pública. Faltou apenas o aval do chefão Mino Carta, notório partidário do lulopetismo, e cujo silêncio contrasta com a ressentida catilinária com que saudou o mea culpa das Organizações Globo por ter apoiado o golpe militar de 1964.
Não que a aceitação dos embargos infringentes seja alguma aberração. Em havendo a prerrogativa de estender o direito de defesa a casos em que não há unanimidade, ou até mesmo ao limite de quatro dissidências, que configuram tal possibilidade, a aceitação ou não desse recurso fica entre a sua aplicabilidade pura e simples e o entendimento de que, a essa altura do julgamento, não cabe mais discutir a revogação de penas que foram definidas pela maioria após um longo e penoso processo. Que os advogados de defesa se apeguem a qualquer brecha jurídica no afã de livrar a cara de seus clientes faz parte do jogo, como também não se pode ignorar os anseios da sociedade, da opinião pública desdenhada pelo ministro Barroso em sua peroração a favor dos embargos. Ou melhor, até se pode ignorar, desdenhar, como vem acontecendo, mas que não se reclame nem se estranhe os protestos, a crescente insatisfação popular que tem nas redes sociais sua nova e grandiloquente caixa de ressonância.
Por conta disso, cobrar neutralidade da opinião pública, como da própria mídia, embute questões que não se esgotam na obediência cega das leis, que como se sabe, são muitas vezes permissivas, na medida em que favorecem os infratores e criminosos. Há um claro sentimento de insatisfação na sociedade, compartilhado e retratado pela mídia, com um sistema legal anacrônico e retrógrado, fiador do binômio que condena o país à barbárie, ao promover a impunidade e estimular a criminalidade. Que o digam os mais de 50 mil assassinatos anuais das estatísticas oficiais, e por isso mesmo subestimados, e os casos de corrupção e escândalos financeiros registrados quase diariamente e que, somados aos que não são descobertos, explicam por que as contas públicas são uma espécie de saco sem fundo.
Justiça por linhas tortas
Há, sim, que se ouvir os clamores da sociedade e se a imprensa já não é capaz de mobilizar a opinião pública as novas mídias estão aí para viabilizar uma tomada de posição mais contundente contra as mazelas e desmandos que se perpetuam no país em todos os níveis. E contra os quais, só uma mudança radical em leis permissivas que “castigam” a gatunagem oficial com meras exonerações de cargos, como ainda na última semana ocorreu com o secretário executivo do Ministério do Trabalho, Paulo Roberto Pinto, suspeito de desvios da ordem de 400 milhões de reais por conta de convênios fraudulentos sob sua supervisão.
Vai daí que quando bandidos como os que mataram covardemente o menino boliviano Bryan são encontrados mortos, sabe-se lá por ação de quem, o sentimento é de que, de alguma maneira, a justiça foi feita. Não precisava ser assim, mas quando as leis não cumprem com seu papel de defender a sociedade – o que se aplica ao próprio mensalão –, antes justiça por linhas tortas do que nenhuma.
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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP