Editorial do Estado de S.Paulo publicado na sexta-feira (20/9) tenta definir o que é “clamor público”, num esforço intelectual para demonstrar que, ao se alongar na justificativa de seu voto, cada magistrado do Supremo Tribunal Federal estaria, em última instância, se dirigindo à “opinião pública”.
O centro dessa reflexão, claro, era a decisão do ministro Celso de Mello, que na quarta-feira (18) desempatou a votação da Ação Penal 470, admitindo a aceitação dos embargos infringentes que podem mudar o destino de alguns dos condenados.
Diz o tradicional jornal paulista que é natural e democrático que “um servidor público consciente” se mantenha atento àquilo que pode ser chamado de “opinião pública”, “clamor público” ou outro nome que se dê ao conjunto das opiniões majoritárias na sociedade. Na interpretação manifestada pelo editorialista, “é essa interação que dá sentido e substância a uma sociedade genuinamente democrática”.
Eis, então, na íntegra, o que a mídia tradicional pensa sobre democracia: ela repousaria na prestação de contas dos atos do Estado, visando uma suposta maioria opinativa da população.
Trata-se de uma sutil, mas reveladora distorção do conceito de democracia, visto o regime perfeito do ângulo dos mediadores da comunicação. Ora, basta um pouco de reflexão para demonstrar que o compromisso de um ministro do STF, do legislador, ou qualquer agente do Estado, com o regime democrático, se define pelo cumprimento da lei, não pela maneira como irá informar a sociedade sobre seus atos. A crítica ou análise de suas decisões e iniciativas cabe a cada cidadão, sendo que, entre esses milhões, há alguns com mais acesso aos sistemas de comunicação.
Também não é preciso ser o gênio da raça para compreender que, numa sociedade desigual como a brasileira, na qual somente na última década se permitiu alguma mobilidade social significativa, os cidadãos com mais anos de educação formal, e com renda suficiente para dispor de tempo e recursos que lhe deem acesso a variadas fontes de informação, têm mais chance de tomar posição consistente com seus interesses sobre os assuntos da agenda comum.
Esses indivíduos são os clientes típicos da imprensa, e suas opiniões tendem a ser condicionadas pelas escolhas da mídia. Portanto, resume-se a essa minoria o que os jornais chamam de “opinião pública”.
Autoengano da imprensa
No contexto que alguns teóricos chamam de cibernético, ou hipermediado, pode-se projetar uma crescente ampliação do ambiente comunicacional, com um número progressivamente maior de pessoas se apropriando dos meios de produção de informação e cultura. Esse novo ambiente se caracteriza, entre outros elementos, pela ampliação das autonomias individuais no que se refere ao protagonismo social. Consequentemente, reduz-se o poder de persuasão dos antigos mediadores, que se concentram na mídia tradicional.
O próprio nome que se dá ao sistema tecnológico que criou a internet, e posteriormente evoluiu para as redes sociais amplas de interação e troca de informações, vem de um discurso de Platão conhecido como “Kibernetes”, traduzido como “A arte de pilotar barcos e homens”.
A essência dessa reflexão, que serviu de inspiração aos criadores dos sistemas de automação e da rede mundial de computadores, é que, tanto na navegação como na política e na comunicação, não se pode assegurar a precisão dos efeitos a partir de uma causa única.
Uma mensagem na internet, assim como um movimento no leme de um barco, indica uma direção na fase posterior do processo, mas não dá nenhuma garantia de um curso permanente no futuro, porque muitas outras variáveis irão interferir no trajeto da embarcação – ou da informação.
No tempo em que toda comunicação de massa dependia de uma mídia que filtrava as informações, essas variáveis aleatórias podiam ser parcialmente administradas. No ambiente hipermediado, a mídia tradicional é apenas uma referência.
Assim, não há como afirmar que a “opinião pública” acha isso ou aquilo, exceto em circunstâncias muito pontuais, que podem ser captadas com uma relativamente baixa precisão, em pesquisas muito elaboradas. Não é o caso de consultas feitas apressadamente no interesse das redações.
A insistência dos jornais em identificar e interpretar um “clamor popular” em torno de qualquer assunto revela apenas o autoengano da imprensa, em certa ilusão de poder sobre as opiniões fluidas que se mesclam continuamente na complexidade social.
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