Ideias fixas e simplificações quase sempre caminham juntas. Estreitam horizontes, diminuem opções, facilitam a criação de delírios e paranoias. Era previsível, quase inevitável, a direção do voto de desempate proferido pelo ministro Celso de Mello na mais recente sessão do julgamento do mensalão. Mesmo assim, armou-se um clima de Juízo Final e apocalipse.
A aceitação do recurso dos embargos infringentes na suprema corte deixou a esfera da tecnicalidade jurídica, foi potencializada e dramatizada de tal forma que se tornou sinônimo de um xeque-mate, antevéspera de uma ruptura institucional. Uma histeria artificial chegou a pintá-la como início da bolchevização do país.
Como se esperava, Celso de Mello deu um show de argumentação. Sua performance e, sobretudo, sua capacidade de clarificar os mais complexos dilemas e impasses doutrinários lembrou aos mais antigos as exibições oratórias de Francisco Clementino San Tiago Dantas (1911-1964), o luminar em matéria de Direito Civil, deputado, ministro da Fazenda, do Exterior, prematuramente falecido e cuja candidatura ao posto de primeiro-ministro durante o interregno parlamentarista, se não fosse torpedeada por Leonel Brizola, teria mudado nossa história.
E assim como San Tiago Dantas, o nosso ministro-decano driblou os adeptos do Fla-Flu ideológico. Seu voto poderá servir para amenizar as penas impostas à antiga cúpula do PT durante o primeiro mandato do presidente Lula, mas alguns dos seus raciocínios, talvez até como provocação, foram ostensivamente baseados em ícones do nosso reacionarismo: o ex-ministro da Justiça Alfredo Buzaid, jurista a serviço da ditadura militar na sua fase mais violenta (1969-1974) e a Constituição de 1969, seu suporte.
Sem projeto
Ao lembrar no início do seu voto que naquele mesmo dia (18 de setembro), comemorava-se o 67º aniversário da Constituição de 1946, Celso de Mello recorreu à simbologia antigetulista, já que aquela carta magna marcou o fim da ditadura do Estado Novo e o início de um período claramente liberal. E quando se referiu ao clamor público usando o sinônimo pejorativo “multidão” (tal como fizera na sessão anterior o recém-chegado Luís Roberto Barroso), o emérito desempatador atropelou sem maiores cuidados e cerimônias os códigos politicamente corretos e os valores ditos “progressistas”.
Devotado militante integralista até 1938, San Tiago Dantas acabou enveredando na direção oposta convertido em baluarte do terceiro-mundismo, precursor da política externa independente e mentor intelectual de um presidente populista e desnorteado como Jango Goulart.
O voto de Minerva na memorável sessão do STF não consagrou a impunidade, ao contrário: a maioria das condenações e grande parte das penas serão mantidas e a vitória dos embargos infringentes foi comemorada pelos advogados e não pelos réus. O escândalo não foi branqueado, nem transformado em pizza. Está aí, será notícia até meados do próximo ano e entrará para os anais do judiciário.
O que se espera tanto do governo, das oposições, como das elites pensantes e da imprensa é que o mensalão não se imponha como preocupação única e exclusiva. Não pode continuar como eixo do debate político e das aspirações nacionais. Sua centralidade é discutível já que todas as circunstâncias que geraram o complexo de ilicitudes e aberrações continuam ativas e prósperas.
O país está sem projeto de país, sem inspiração para empunhar bandeiras, sonhar quimeras, assumir-se como ideia. Algo mais do que brilhantes arrazoados jurídicos e inspiradas perorações acadêmicas fazem-se necessárias para nos tirar do atoleiro onde o radicalismo partidário nos enfiou.