O olho grande da National Security Agency (NSA), serviço de inteligência norte-americano ultrassecreto, contra o Brasil, cuja descoberta causou a suspensão do encontro da presidente Dilma Rousseff com Barack Obama em Washington, é só parte – pequena – da bisbilhotagem dos EUA por aqui. Há mais, muito mais, sendo feito para violar, e sem grande esforço, os segredos de um país cujo papel nas relações internacionais mudou dramaticamente com o fim da Guerra Fria, garante Vladimir Brito, pesquisador do Centro de Estudos de Inteligência Governamental (Ceig) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dissolvidos antigos campos ideológicos e rearrumadas trincheiras políticas, os Estados Unidos voltaram sua inteligência para seus interesses mais imediatos na política e na economia, explica.
Não se trata, contudo, exatamente de novidade, afirma Brito, mestre em ciência da informação pela UFMG, com a dissertação “O Papel Informacional dos Serviços Secretos”, defendida em 2011. “Não acredito que exista um motivo determinado para uma grande mudança da política dos EUA de espionagem”, afirma o pesquisador. “Tão somente fomos confrontados apenas neste momento com a prova cabal de que espionagem existe. Acordamos para o fato de que as relações internacionais têm dimensões relativamente anárquicas, e de que os norte-americanos continuam a ter interesses econômicos e políticos na região que não podem ser abertamente declarados.”
O trabalho dos arapongas dos EUA é facilitado por uma longa lista de fragilidades – e muitas delas não são exclusividade brasileira, diz. “Dos 13 servidores de domínio da Web, 10 estão nos EUA, sendo um diretamente dentro da agência de inteligência militar”, destaca o acadêmico. Há, contudo, problemas propriamente brasileiros. Entre eles, uma legislação antiespionagem da época da ditadura militar (a Lei de Segurança Nacional) e uma agência (a Abin) que acumula poderes para fazer inteligência interna e externa, desenho institucional pouco aconselhável em países democráticos e limitações legais.
“A superioridade norte-americana é tremenda, mas é essencial que algo seja feito”, defende.
Sempre se pensou que o Brasil fosse um alvo secundário no jogo da espionagem internacional. O que mudou?
Vladimir Brito – A NSA possui um enorme aparato voltado para interceptação e armazenamento de dados desde a década de 1960 que recentemente foi enormemente ampliado. O Brasil, tanto quanto diversas outras regiões do mundo, tem grande parte de seus dados prospectados e coletados desde muito tempo. Provavelmente, passaram a ser mais analisados. Sob o prisma geopolítico, o País tem peso regional em algumas dimensões e global em outras; logo, compreender o processo decisório governamental e saber antecipadamente as escolhas do governo brasileiro pode representar uma grande vantagem em diversas esferas de disputa e negociação. Se os dados estão lá, por que não utilizá-los?
O fim da Guerra Fria causou mudança de alvos para a espionagem dos EUA?
V.B. – Com a vitória norte-americana na Guerra Fria, países então alinhados começaram a ser vistos como concorrentes. No caso do Brasil, questões sobre posicionamento regional, disputas no âmbito da OMC ou política regional de defesa seriam exemplos de temas que podem ter adquirido maior relevância.
Foi isso que determinou a entrada do Brasil na lista prioritária de alvos?
V.B. – Creio que o posicionamento independente do País em questões globais, a exemplo da OMC ou da questão nuclear iraniana, podem ter influenciado a demanda de informações por parte dos governantes norte-americanos. Por outro lado, como já observado, os EUA possuem uma enorme capacidade de armazenamento e coleta de dados. Ou seja, se o Brasil adquiriu prioridade na região, bastou a NSA recuperar as informações já recolhidas para que fossem integradas e analisadas.
O fato de o Brasil ter um governo alinhado à esquerda contribuiu para transformar o país em alvo?
V.B. – O Brasil, em maior ou menor monta, sempre deve ter sido um alvo relevante, dado seu peso regional. Basta lembrar das denúncias de interceptação de comunicações pelos EUA durante o período de licitação do Sivam. Está mais relacionado ao Estado brasileiro e a seu peso regional e global do que ao presente governo.
E a política externa brasileira, também nos coloca como alvo americano?
V.B. – O Brasil é uma democracia, tem eleições livres, respeita os fóruns globais, não emprega ameaças para resolver querelas com os Estados vizinhos mais frágeis, a exemplo da nacionalização da Petrobrás na Bolívia. Também não somos ameaça militar, assinamos o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, e nosso sistema de inteligência é frágil. Não acredito que exista um motivo determinado para uma grande mudança da política dos EUA de espionagem. Tão somente fomos confrontados apenas neste momento com a prova cabal de que espionagem existe. Acordamos para o fato de que as relações internacionais têm dimensões relativamente anárquicas e os americanos continuam a ter interesses econômicos e políticos na região que não podem ser abertamente declarados.
O Brasil tem hoje meios de se defender de espionagem, como a denunciada contra a presidente Dilma e a Petrobrás?
V.B. – Infelizmente, no curto prazo, não. As agências militares e de inteligência dos EUA estão entre as principais financiadoras das empresas de tecnologia norte-americanas. A própria internet só foi possível devido ao papel do governo americano atuando como capital de risco. Dos 13 servidores de domínio da Web, 10 estão nos EUA, sendo um diretamente dentro da agência de inteligência militar. O Icann e a Verisign também são controlados pelos norte-americanos. Os sistemas operacionais, softwares de roteadores de dados, gestão de redes, smartphones, criptografia, são também dos Estados Unidos, sendo vendidos a nós como pacotes fechados que, uma vez compilados, não se sabe seu conteúdo. E se possuem portas de acesso para a NSA? Existe uma rubrica no orçamento dessa agência com a única finalidade de inserir fragilidades nos softwares de criptografia vendidos a terceiros. Também foram publicados documentos dando conta do pleno acesso aos smartphones por parte da NSA. Por fim cabe comentar que, além da interceptação de dados digitais, existe a espionagem humana, por satélite, fontes abertas, entre outras. Esses ramos têm um enorme aparato dentro do Estado norte-americano.
Quem deveria agir nesse caso: Abin, PF, Forças Armadas ou todos?
V.B. – As competências são relativamente difusas. Existe a função de contraespionagem que nessa esfera caberia à Abin. Todavia, parte da legislação, que se remete à Lei de Segurança Nacional, tipifica espionagem como um crime a ser investigado pela PF. As Forças Armadas, por outro lado, estão construindo a estrutura nacional de defesa cibernética a partir do CDCiber. Inexiste uma visão sistêmica da nossa estrutura de inteligência, e as informações não conseguem fluir.
A Abin está preparada?
V.B. – Não. A presença externa da Abin é limitada. No ambiente interno, não tem autorização legal para interceptar fluxo de dados ou comunicação telefônica. Por fim, cabe ponderar que é comum a divisão organizacional das agências de inteligência em países democráticos em inteligência interna e externa. A lógica de operar sob a Constituição e as leis é relativamente diferente no ambiente anárquico de parte das relações internacionais. Não seria prudente, sob o prisma democrático, uma mesma organização atuar em negócios tão díspares.
Quais seriam as áreas mais sensíveis à espionagem estrangeira no Brasil?
V.B. – Em ordem de importância, colocaria o processo decisório presidencial; as táticas e estratégias em órgãos multilaterais, tais como ONU, OMC ou Unasul; a tecnologia voltada para a defesa; e, evidentemente, as tecnologias nacionais competitivas, como é o caso da prospecção em águas profundas da Petrobrás.
Temos leis para proteger segredos?
V.B. – Existe a Lei de Segurança Nacional, a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Vem de um contexto de Guerra Fria, é genérica e precisa urgentemente ser atualizada. Além disso, não prevê instrumentos adequados para a investigação dos crimes de espionagem. É difícil aplicar qualquer pena contra quem não consegue se identificar, não é verdade? Também temos o Decreto nº 7.845, de 14 de novembro de 2012, que regulamenta o tratamento das informações classificadas sob o marco do segredo governamental. Esse decreto, contudo, é mais voltado para a descrição do que sejam informações a serem protegidas.
O que acontece se um cidadão for surpreendido no Brasil tentando obter segredos de Estado, tecnológicos, etc., para repassar a outros países?
V.B. – Poderia ser processado com base na Lei de Segurança Nacional. Digo poderia, porque não se tem notícia nas últimas décadas de nenhum caso de prisão e julgamento por espionagem dentro do País. Os EUA, por exemplo, têm inventariados 141 casos de espionagem levantados somente a partir de fontes abertas, no período de 1975 a 2008. Quantas ocorrências foram noticiadas no Brasil?
Algo pode ser feito ou a superioridade tecnológica dos EUA e de outros países é tal que isso se torna impossível?
V.B. – A superioridade norte-americana é tremenda, mas é essencial que algo seja feito. Primeiramente, temos de repensar nosso sistema de inteligência sob o prisma organizativo e funcional. Não adianta ter meios sem que existam instituições adequadas para operá-los. Em relação à tecnologia, temos que redesenhar nossa participação na internet de maneira sistêmica. As fragilidades estão em todo o espectro tecnológico, dos softwares ao computador de mesa, passando pelo gerenciamento de roteadores e armazenamento de conteúdo. Alguns setores estratégicos não podem ficar à mercê de tecnologia em que não se tem acesso ao conteúdo. É uma jornada longa, mas realizável.
Além de não ir ao encontro de Obama, o que o governo brasileiro poderia fazer para se proteger contra a espionagem?
V.B. – Primeiramente, não ir ao encontro já é um modo de retaliação, pois os EUA também têm interesse em construir acordos com o Estado brasileiro. A venda de caças para a FAB é um bom exemplo desse empenho. Caberia também repensar primordialmente como lidamos institucionalmente com a contrainteligência e contraespionagem. Além disso, devemos reorganizar as agências que têm responsabilidades na área e o sistema de inteligência como um todo. Concomitantemente, necessitamos mapear o fluxo de dados dentro das redes digitais e construir estruturas com tecnologia, nacional ou estrangeira, cujo conteúdo possamos auditar e de fato prover segurança. Um bom começo seria a potencialização do Cepesc, responsável pelo desenvolvimento de criptografia para o governo, quem sabe convencendo os governantes da importância de seu emprego adequado.
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Wilson Tosta, do Estado de S.Paulo