Em 1959, embora já trabalhasse no Banco do Brasil, eu dava meio-expediente na Editora Delta, à travessa do Ouvidor, 66, 3º andar, no Rio de Janeiro. Não consigo me lembrar como fui parar nessa empresa, provavelmente porque a essa altura, já colaborando com o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e com dois livros traduzidos para a Civilização Brasileira, eu andasse buscando trabalhos extras onde quer que fosse. Soube que a Delta estava preparando uma enciclopédia e dispunha de verbetes para tradução. Creio que comecei por aí, mas acabei indo trabalhar com o doutor Pedro Lorch, um dos sócios da firma, na edição, para o público jovem brasileiro, de uma adaptação da enciclopédia juvenil norte-americana, Our Wonderful World. Toda semana, no quarto andar da editora, reunia-se um grupo de intelectuais(um brainstorm, como dizia o doutor Pedro) para opinar sobre as matérias que deviam entrar em tradução no livro e sobre as que precisavam ser adaptadas ou suprimidas. Eu devia atuar como uma espécie de secretário silencioso, anotando as sugestões. De posse delas, competia a mim encontrar os livros em que tais sugestões apareciam, copiá-las e conformá-las ao espaço a elas destinado no livro. Onde aparecia no original inglês, por exemplo, o diário de navegação de Colombo, a sugestão óbvia era trocá-lo pela carta de Caminha, e eu devia examinar o livro e achar os trechos correspondentes para depois adequá-los às páginas de nossa enciclopédia. Esse trabalho era feito na biblioteca do terceiro andar, onde eu trabalhava sozinho, pesquisando os livros que lá havia e outros que eu podia encomendar à vontade às livrarias associadas da Delta. Nesse verdadeiro paraíso, sonho dourado do jovem poeta e escritor que então eu era, além de conviver com grandes intelectuais como Anísio Teixeira, Otto Maria Carpeaux, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro, Péricles Madureira de Pinho e outros, eu ficara conhecendo o Carlos Scliar, que tratava das ilustrações e da paginação do livro, e chegou a montar seis cadernos da nossa enciclopédia (que guardo até hoje como relíquia). Mas quando estava mais me deleitando com aquele banho lustral, apesar das dificuldades crescentes para encontrar as fontes sugeridas nas reuniões, Scliar me informou que a obra ia ser descontinuada para dar lugar a um novo projeto que acabara de ser aprovado pela Delta: a criação de uma revista. Senti-me ameaçado e mesmo despedido e fui falar com o doutor Pedro, que me disse ser verdade, que a enciclopédia entraria em recesso e eu devia desocupar a biblioteca para a nova turma que chegava. Mas não estava despedido, apenas perderia a exclusividade da sala, pois ela seria transformada em redação. Sem dúvida teriam um lugar de tradutor para mim na futura revista. O mal é que eu ia ficar sem o “bico” que, confesso, graças à proteção de (são) Pedro Lorch, era bem remunerado. Mas vibrei quando me garantiu que eu não sairia da editora, talvez apenas da biblioteca. E a minha catedral refrigerada e silenciosa, onde eu fazia as minhas pesquisas e condensações, se viu um dia, de repente, invadida por uma turma ruidosa e descontraída que vinha criar a revista Senhor.
Francis, Ivan Lessa, Jaguar…
Quando cheguei de manhã, já encontrei a sala ocupada. À mesa, que eu considerava minha, estava sentado um senhor forte, de terno e gravata e fumando cachimbo, uma gravata dessas coloridas de entrevista na televisão. Ao lado dele, na mesinha onde eu escrevia à máquina, uma jovem senhora, com todos os clichês de secretária do chefão. Tratava-se de Nahum Sirotsky, jornalista da pesada, que estava vindo da Manchete depois de passar por vários jornais e revistas de prestígio e ter sido jornalista acreditado junto à ONU, em Nova York. É possível que tenha trazido de todos esses postos avançados uma certa pinta de americano, pois só aprovava os trabalhos ou sugestões de seus auxiliares com um okie dokie, que era também correspondido por eles. E eles eram: Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Adirson Barros, e na parte gráfica, além naturalmente do Scliar (que como eu já estava na casa), Glauco Rodrigues e Jaguar. Com a presença dos irmãos Weissmann (Simão e Sérgio), os sócios da Delta mais diretamente ligados à revista, Nahum fez um briefing sobre os objetivos da publicação que seria destinada a homens mas dirigida às mulheres de bom gosto; trataria de política e literatura em pé de igualdade; primoroso apuro gráfico; um estudo de fotógrafos premiados, mostrando moças bonitas e descoladas; muito humor, escrito e desenhado; ensaios sérios ao lado de dicas frívolas e maneirosas. Enfim, uma revista que pretendia ser uma New Yorker ou uma Esquire mas com a nossa sem-cerimônia tropical. E apresentou um “boneco” do que seria o primeiro número: artigos de Carlos Lacerda, Otto Maria Carpeaux, Anísio Teixeira, Odilo Costa Filho, Reynaldo Jardim, Clarice Lispector, Flávio Rangel, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, além de poemas e uma novela completa.
Nahum, com seu cachimbo, juntamente com os okie dokies Ivan Lessa, Luiz Lobo e Paulo Francis, pareciam todos empolgadíssimos como que antevendo a revolução gráfica que iriam causar no mundo editorial. Diferentemente do que ocorrera na enciclopédia, eu agora me sentia de todo sem função no meio daqueles rapazes agitados que se comportavam como estrangeiros (ou pelo menos com a ideia que eu fazia de estrangeiros). Continuei a ter uma mesinha com máquina de escrever que a bem dizer não usava, já que era continuamente compartilhada com os dinâmicos redatores. O mais lépido e trepidante deles, Ivan Lessa, havia recém-chegado de Londres, onde morava, e produzia ideias em cascata, parecendo estar ao mesmo tempo em todos os cantos e banheiros da editora. Luiz Lobo, mineiro já aclimatadamente carioca, distribuía seu sorriso matreiro mesmo tratando dos assuntos mais sérios, nos quais sempre introduzia um viés malicioso. Francis chegara na base do low profile, pois dias antes tinha sido o protagonista de um episódio então comentado a sottovoce pelos redatores da revista: ele fizera a crítica de um espetáculo teatral da companhia Tônia, Celi, Autran, e marcara a bobeira de insinuar que seus componentes formavam “um trio amoroso”. Dias depois, numa apresentação pública, Celi encontrara Francis na plateia, tirara-lhe os óculos e lhe aplicara um tabefe no rosto. Eu, que já o conhecia dos tempos do Suplemento do JB e sabia de sua ampla cultura literária, logo me aproximei dele e antes de sair o primeiro número, em março de 1959, ele já me “distinguia” com a encomenda da tradução de As Neves do Kilimanjaro, de Ernest Hemingway, para sair no lançamento da revista, onde acabei aparecendo em dose dupla, pois, nesse número inaugural, saiu também a minha tradução de um conto de Ray Bradbury, En la noche, apropriadamente ilustrado por Jaguar. Francis gostou tanto do trabalho que até escreveu uma nota de abertura dizendo que eu havia propositadamente usado os tratamentos tu e você na mesma frase para dar aos diálogos maior fluência e naturalidade.
Tudo cheirava a sucesso
Eu logo me integrava na equipe da Senhor e passei a traduzir sistematicamente todas as novelas e também alguns contos esparsos e poemas. Nahum chegou a me encomendar um artigo “Para inglês ver”, que saiu no número de abril de 1959. Passei a “viver” o clima de agitação da revista, indo lá todos os dias, mesmo quando não tinha trabalhos para receber ou entregar. Um de seus financiadores, o jovem Sérgio Waismann, que também fumava cachimbo, entusiasmado com a dinâmica de Nahum, gostava de circular pela redação conversando com as figuras importantes que nos visitavam ou vinham trazer suas colaborações, e me tratava como um velho funcionário da casa. Tudo cheirava a sucesso. Grande foi a euforia dos patrocinadores e maior ainda a dos redatores com o lançamento dos primeiros números, largamente elogiados pela imprensa, embora as vendas ainda fossem inexpressivas e as firmas se mostrassem arredias diante dos altos padrões de qualidade exigidos para a colocação de anúncios. Mas, ao fim de três meses, as finanças começaram a andar mal e os demais sócios resolveram estabelecer um deadline para saírem do vermelho. Contrataram então Ivan Meira e Edeson Coelho para comandar a publicidade e eles apareceram à frente de um grande séquito com a aura de trazerem consigo as contas publicitárias mais gordas do país. Contudo, a vinda deles implicou apenas em acréscimo da folha de pagamento e a consequente redução do deadline antes imposto.
Em fins de 1962, Reynaldo Jardim, que já havia assumido o lugar de Nahum, e o Edeson Coelho, o corifeu do gigante publicitário, assumiram o patrimônio da revista. Fui mantido em meu cargo de tradutor oficial e minha última colaboração nesse setor foi a novela “Amor no trem”, de Mary Mac Carthy, em setembro de 1962. Reynaldo, não podendo pagar os altos direitos autorais exigidos pelas editoras estrangeiras das novelas, resolveu substituí-las por uma seção chamada “Balaio”, que era uma espécie de suplemento literário com notas sobre livros, teatro, cinema etc. Nela publiquei, no mês seguinte, um texto sobre Hermann Hesse, que havia falecido em agosto daquele ano. Com a nova direção, a revista em seguida mudaria de endereço, deixando a travessa do Ouvidor. Seriam ainda editados alguns números, com novo rumo editorial, dando maior ênfase aos assuntos econômicos. Acabou encerrando definitivamente suas atividades em janeiro de 1964. E assim fiquei de novo sozinho na biblioteca, de volta ao trono, aguardando um novo milagre acontecer…
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Ivo Barroso é poeta, escritor e tradutor