Li Zhensheng era fotógrafo do jornal Diário de Heilongjiang, no nordeste da China, quando Mao Tse-tung deu início à Revolução Cultural (1966-76), período de violenta perseguição política aos “inimigos internos” do Partido Comunista. Arriscando a vida, guardou sob o assoalho da casa 30 mil negativos da época, muitos mostrando fuzilamentos e humilhações públicas, proibidos de serem divulgados. Está no Brasil para participar do Festival Paraty em Foco, sábado (paratyemfoco.com).
No início, todo mundo apoiava a Revolução Cultural porque havia aquele objetivo de evitar que o partido se tornasse revisionista e que a China mudasse de cor e se tornasse capitalista. Isso era o que todo mundo temia. Naquela época, é claro que todos os repórteres seguiam as diretrizes do Partido Comunista. Quando o partido dizia para tirar foto disso, e não daquilo, todo mundo obedecia. Porém, era da minha natureza fotografar o que devia e o que não devia – e escondia só pra mim.
Desde o início da revolução, eu já tive essa ideia. Fui influenciado por dois grandes mestres. Um foi Wu Yinxian Chien, um grande fotógrafo. Ele dizia que temos de ser testemunhas e registradores da história por inteiro. Ou seja, tanto fotografias úteis quanto inúteis. Somente somando essas partes a história fica inteira. O mestre do Ocidente foi Henri Cartier-Bresson. Ele visitou a China a convite do governo para conhecer o país e elogiar o comunismo, mas também fez algumas críticas. Vários criticaram Cartier-Bresson por isso, mas vi fotos dele e não vi nada de errado.
“Campo de reeducação”
Podíamos fotografar “sessões de luta”, quando havia “julgamentos” públicos de pessoas que não seguiam as políticas do governo. Porém, se as pessoas julgadas eram castigadas, era proibido. Quem fotografava era criticado por gastar verba do governo com fotos inúteis. Na nossa equipe havia cinco fotógrafos. No início, revelávamos juntos e pendurávamos na câmara escura. Os outros fotógrafos viam que eu tirava fotos indevidas e me denunciaram para a chefia.
As pessoas tinham de tomar cuidado para que seus vizinhos não as delatassem às autoridades. Eu mesmo presenciei um colega do jornal condenado porque a mulher o denunciou. Na época, os funcionários pegavam o jornal para usar como fraldas para bebês. Esse colega pegou um jornal com a foto de Mao e o usou para recolher o excremento. A própria mulher entregou o jornal sujo e o marido foi condenado a 18 anos.
Com o tempo, passei a esconder essas fotografias. Guardava numa pasta escondida e só revelava quando todo mundo ia para casa. As denúncias para a chefia diminuíram, mas eu estava tirando cada vez mais fotos “inúteis”. Passei a levar para casa. Abri um buraco no chão. Gastei uma semana serrando, pois não tinha instrumentos adequados. Embaixo, havia uma profundidade de 1,5 m. Isso foi em dezembro de 1968. Como o governo perdeu a confiança em mim, eu e minha mulher fomos a um “campo de reeducação” [por dois anos e meio]. Se nós morrêssemos, ninguém saberia onde estavam os filmes. Tivemos de contar a uma pessoa de confiança. Ele ainda perguntou: qual a utilidade desses filmes? Mas eu também não sabia explicar direito, nem poderia imaginar que essas fotos pudessem correr o mundo.
Você pode mudar a história, mas não para sempre
Ele foi um grande amigo, guardou o segredo por 37 anos – até 2006, quando a estação de TV japonesa NHK me acompanhou em uma viagem a Harbin [capital de Heilongjiang]. Por que conto isso hoje? Porque podemos tirar uma lição: não importa quão grande é o perigo, a nossa consciência e os nossos princípios têm de ser preservados.
A primeira vez que publiquei as fotos foi em 1987, quando a Associação dos Fotógrafos da China fez uma grande competição. Entreguei uma pequena amostra de 20 fotografias, uma série que batizei de “A história contando o futuro”. Todos os 17 jurados votaram pelas minhas fotografias, não havia nada parecido. A China estava mais aberta na época, sob o presidente Zhao Ziyang (1987-89). Era politicamente mais relaxado.
Os chineses sempre criticam os japoneses, dizendo que não reconhecem os erros na II Guerra Mundial. Mas nos nossos livros didáticos omitiram os capítulos da Revolução Cultural. Se haverá uma comissão da verdade? No longo prazo, é possível. Já tem muitas pessoas exigindo, inclusive sobre o 4 de junho [massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial]. Você pode mudar a história por algum tempo, mas não para sempre.
O que mais me satisfaz é que não somente o povo chinês não me esquecerá. O mundo inteiro ficou sabendo das minhas fotografias. Hoje, por meio da sua caneta e do fotógrafo, vocês farão o Brasil conhecer uma pessoa chamada Li Zhensheng.
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Fabiano Maisonnave, da Folha de S.Paulo