O golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet 40 atrás, no Chile, pôs fim à força a uma experiência política que podia significar um novo momento na história da humanidade. O senador Salvador Allende se elegeu presidente da república três anos antes. A vitória foi por uma margem muito estreita de votos, numa campanha limpa e regular. Mas o que ele prometia era interromper a continuidade histórica e levar o Chile ao socialismo, conforme o molde marxista. Sem que para isso tivesse que recorrer às armas de uma revolução brusca e violenta.
Até então, só havia um caminho para o socialismo proposto por Allende: através da ditadura do proletariado. Essa fase de transição devia levar ao comunismo, um sistema no qual cada um contribuiria com suas possibilidades e sacava conforme as suas necessidades. Um igualitarismo completo, portanto. Mas o desfecho, em todos os casos, foi outro tipo de socialismo: o socialismo dito real (não o desejado, mas o possível em virtude das condicionantes externas que o limitavam). A denominação pragmática camuflava o que realmente acabaria por prevalecer: uma ditadura pura e simples. Ela eliminaria um bem nobre e essencial ao homem: a liberdade. Transformou-se em tirania.
Allende chegou ao poder através do meio adequado, o voto, para a conquista do bem político mais nobre da humanidade: a democracia. Não era uma manobra. Sua carreira política fora brilhante. Médico, percorrera o vasto interior chileno com suas habilidades para curar e encantar pessoas. Honrou e perpetuou sua cadeira no senado. Venceu apertado os representantes do conservadorismo, que se dividiram tanto à direita quanto os novos pretendentes ao poder se fracionaram à esquerda.
Allende acumulou vitórias e derrotas ao longo do seu mandato, mas seu rumo era ascendente. Vencera as eleições parlamentares no ano anterior. Essa tendência irritou e assustou os seus adversários. Eles não quiseram esperar por mais dois anos para a nova eleição. Temiam que a esquerda pudesse alcançar um segundo mandato. Como não havia o instituto da reeleição, os candidatos com maior potencial, tanto no Partido Socialista quanto no Partido Democrata Cristão, sem falar na esquerda mais extremada, tinham discursos reformistas ou revolucionários para fazer coro às reivindicações e desejos de um povo despertado pelos meios de comunicação da UP. Anteciparam-se com o golpe.
Passo de ganso
Essa era uma ideia que os grupos radicais de direita desenvolveram antes e depois da eleição de Allende. Disso deram provas em várias manifestações, dos comícios às greves patronais (os locautes) e atentados. Não chegariam ao ato fatal de 11 de setembro de 1973 se não contassem com a ajuda dos Estados Unidos. Na época essa percepção já era partilhada por muita gente.
Eu mesmo, que acompanhei os dias derradeiros do governo Allende, me mudei para o hotel Sheraton, na praça onde estava o palácio presidencial, o La Moneda, por causa da quantidade de americanos que lá estavam hospedados. Não foi só por esse detalhe que se reforçou minha observação sobre a intervenção direta dos EUA na vida chilena.
Fui para Santiago como o primeiro enviado em um programa de intercâmbio (na verdade, de proteção) entre o El Mercurio e O Estado de S. Paulo. Os donos do maior jornal chileno temiam sua expropriação. A aliança com o Estadão, que já rendera a criação de uma agência de notícias, podia servir de canal para reação, protestos e medidas de reversão na eventualidade de se consumar a ameaça feita por integrantes da Unidade Popular.
Com essa credencial, circulei livremente por redutos da elite chilena, dentro e fora de El Mercúrio, que era um dos centros da conspiração para depor o presidente. Meu problema, a partir daí, foi como usar essas informações nas matérias que precisava enviar de Santiago para São Paulo. As primeiras não foram publicadas. Contrariavam o que dizia a grande imprensa chilena e ecoava a agência das corporações familiares que controlavam a informação no continente.
Só duas semanas depois saiu minha primeira matéria, uma alegoria à base da história (e mitologia) grega que antecipava o desfecho do golpe. Mas intercalada por despachos de interesse do jornal, o contrário do que eu dizia. Frederico Branco, editor de internacional do Estadão, de quem discordava editorialmente e gostava pessoalmente (e, talvez, vice-versa), me explicou e se justificou: meu silêncio, diante das razões da minha ida, não estava sendo entendido e muito menos aceito pela direção do El Mercúrio.
Ele precisava publicar uma primeira matéria minha para diminuir a tensão entre as duas “casas”, agravada pela circunstância (para mim inexplicável até hoje) de que Fernando Pedreira, nosso redator-chefe, fora o responsável pela indicação do meu nome ao dono do jornal, Júlio de Mesquita Neto (Miguel Urbano Rodrigues, exilado português de Salazar e um dos principais editorialistas do Estadão, também não entendeu muito, mas deu o veredito decisivo diante da minha dúvida: “Vá!”).
Só não podia ser aquela matéria apenas. Enxertara trechos de telegramas das agências para maquilar o meu texto e me dar algum oxigênio. Como jornalista, fiquei com raiva. Como pessoa, agradeci a iniciativa de Frederico. Foi providencial para minha manutenção em Santiago e volta ao Brasil.
Voltei com a plena convicção de que a intromissão americana na crise chilena foi um crime de lesa-humanidade. Allende não era inocente. Sabia que vários dos seus aliados acreditavam que as mudanças mais profundas só seriam realizadas por ato de força. Contrariavam frontalmente interesses poderosos. Em algum momento haveria confronto.
Homens de esquerda da idade de Allende ainda estavam fascinados pela revolução cubana, no caso dele fascínio incrementado pela sua relação pessoal com Fidel Castro (que o presenteou com a submetralhadora que ele carregava no dia final do seu governo e com a qual se matou, numa cadeira do palácio La Moneda).
Nesse ponto Allende tinha a determinação de Getúlio Vargas. Mas só em um último e dramático momento ele recorreria à via armada. Exceto por essa circunstância excepcional, era um homem do regime democrático, confiante no seu carisma e nas suas aptidões para lidar com o povo. Uma qualidade que deixou seus adversários na defensiva e, a partir daí, moveu as engrenagens da conspiração apoiada pela CIA e outras forças do aparato militar americano. Com um grau de sofisticação e determinação de fazer inveja ao modelo do pronunciamiento hispano-americano e outros golpes de Estado.
Circulando pelos ambientes dos conspiradores, formei também outra convicção: era precária ou mesmo falsa a imagem do espírito democrático das forças armadas chilenas. Essa estrutura artificial cedeu seu lugar a uma atividade sediciosa eficiente e selvagem quando os velhos interesses consolidados em anos de dominação política pelo mesmo grupo social se sentiram ameaçados, pela primeira vez. Deu para entender por que os militares chilenos marchavam com o passo de ganso e tinham uniformes semelhantes aos do exército alemão.
Enredo semelhante
Dias antes do golpe tive acesso, através do braço mais radical da esquerda, o Mir, ao depoimento de soldados, marinheiros e oficiais inferiores sobre a preparação da agressão ao governo constitucional. Já era sabido que o general Pinochet, em quem Allende depositava confiança, era um dos líderes do movimento. Por que ele foi mantido na sua importante posição de comando? Por que as denúncias e apelos do deputado Radomiro Tomic, do PDC, não foram levados na devida conta? Embora com um serviço de segurança pessoal, Allende acabou sendo surpreendido pela fulminante investida das forças armadas. Situação perdida, se suicidou numa dependência isolada do palácio. Estava só quando a bala destruiu sua cabeça. Uma cena expressiva do seu fim, mas injusta para com a grandeza da experiência chilena, sem paralelo na história contemporânea da América do Sul, contrastante com tragédia semelhante no maior país do continente, o Brasil.
O cenário era parecido e o enredo tinha semelhança. Mas os homens, lá, tinham dimensão muito maior do que os de cá. Uma grandeza que o big stick americano não levou em consideração, perpetrando um dos atos mais ofensivos à dignidade humana.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)