A reportagem da Folha de S.Paulo sobre a presença da pecuária e de plantações de soja em terras da Amazônia Legal, publicada no domingo (15/6), tem o mérito de esclarecer alguns equívocos comuns no noticiário sobre a preservação da mais extensa reserva biológica do planeta. A primeira questão que merece referência é exatamente a diferenciação entre os conceitos de territorialidade – a área definida legalmente como Amazônia – e ambiental – a qualificação dos biomas amazônicos.
Em geral, quando se refere ao tema, a imprensa mistura os dois conceitos, ou trata exclusivamente da Amazônia Legal sem explicar ao leitor que esse território contém múltiplos biomas. Por trás dessa omissão, quase sempre a atenção se concentra nas extensões florestais e se negligencia a importância da preservação das áreas de cerrado. Como se os cerrados fossem territórios sem valor, planícies de vegetação menos densa à espera da chegada dos tratores.
Outro aspecto negativo do noticiário se refere ao fato de que a imprensa trata o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, como se fosse o mais legítimo representante dos interesses da agricultura nacional no governo. Não é: Stephanes é o titular do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que tem como missão ‘estimular o aumento da produção agropecuária e o desenvolvimento do agronegócio, com o objetivo de atender o consumo interno e formar excedentes para exportação’.
Não fosse o ministro, ele próprio, um economista e político historicamente comprometido com o setor chamado de agronegócio, o ministério que dirige não tem compromisso explícito com a preservação do meio ambiente, mas apenas com o crescimento da produção agropecuária.
Papel limitado
As políticas públicas no setor agrícola devem ser, teoricamente, administradas em conjunto pelo ministério dirigido por Reinhold Stephanes, mais o Ministério do Desenvolvimento Agrário, cujo titular é o engenheiro gaúcho Guilherme Cassel, e o Ministério do Meio Ambiente, dirigido pelo geógrafo Carlos Minc.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário tem entre suas atribuições conduzir a reforma agrária, promover o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar e regularizar as áreas ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos. Entre as atribuições regimentais do Ministério do Meio Ambiente estão a criação de ‘estratégias, mecanismos e instrumentos econômicos e sociais para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais’, o estabelecimento de ‘políticas e programas ambientais para a Amazônia Legal e zoneamento ecológico-econômico’, além de cuidar das políticas ‘para a integração do meio ambiente e produção’.
Deixando de lado a complexidade da estrutura criada pelo atual governo, que claramente dificulta o desenvolvimento de uma estratégia de produção agropecuária que respeite o meio ambiente e a necessidade de preservar os interesses de comunidades rurais e silvícolas tradicionais, convém observar como a imprensa, de modo geral, estabelece uma clara precedência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sobre os demais órgãos encarregados do setor.
Ainda mais claramente, a imprensa nacional trata o Ministério do Meio Ambiente (MMA) como uma ONG cujo papel seria limitado a fiscalizar o risco ambiental da atividade econômica. A rigor, o MMA teria precedência sobre todos os outros ministérios e órgãos públicos, uma vez que lhe cabe estabelecer os limites em que o desenvolvimento deve se submeter às exigências de preservação da diversidade ambiental.
Ótica única
Também é clara a condição subalterna em que a mídia coloca, diante da opinião do público, a relevância do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em especial se se considerar a importância econômica e social do segmento. Embora haja algumas controvérsias sobre a definição do termo agricultura familiar, classificam-se no segmento cerca de 85% dos estabelecimentos rurais em todo o país, que são responsáveis por quase 40% do valor bruto da produção agropecuária nacional, com participação superior a 50% na renda total da agropecuária.
Mesmo recebendo menos recursos públicos do que as empresas rurais genericamente chamadas de agronegócio, as unidades de agricultura familiar são mais produtivas, geram mais emprego, distribuem melhor a renda e causam menos desperdício de alimentos, segundo o Centro de Ciências Rurais da Universidade de Santa Maria (RS), uma das referências nacionais no estudo da economia agrícola. Dos cerca de 18 milhões de brasileiros que vivem da economia rural, cerca de 77% trabalham na agricultura familiar.
Se o segmento é especialmente importante em termos econômicos e tem grande relevância social, por que razão a imprensa o trata como um elemento de segunda categoria? Afora o fato de o ministro Stephanes ser um político afinado com a matriz predominante na chamada grande imprensa, talvez deva ser considerado o fato de que os grandes jornais e as revistas de influência nacional se dirigem basicamente ao público urbano.
Como se sabe, as cidades brasileiras vivem de costas para a zona rural, só enxergam o campo como área de lazer, e não cabe, nas estratégias de marketing das empresas de comunicação, contemplar os interesses das populações menos densas das zonas agrícolas. Essencialmente, o noticiário econômico em geral e o de serviços são dirigidos ao leitor urbano. São raros os especialistas em economia rural na chamada grande imprensa, os antigos correspondentes no interior foram dispensados e o noticiário do setor ficou ainda mais dependente do viés ideológico das redações.
Mas nada justifica enxergar a questão agrícola e o desafio ambiental sob a ótica única das grandes empresas.
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Jornalista