Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa e a reforma política

Na quinta-feira (29/4), a edição de O Globo destacava como manchete o seguinte fato: ‘Senado manobra e rejeita corte de 5.500 vereadores’. À página 3, o jornal, valendo-se de estudos de Eduardo Gianetti, oferecia aos leitores razoável quadro a respeito de uma emenda, sob a relatoria do deputado Jefferson Campos (PMDB-SP), na qual se altera a composição das câmaras de vereadores. Paralelamente, o Senado, contrariando uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral, votou outra emenda em que promove um corte bem inferior ao estipulado pelo TSE. Sobre o tema também se manifestou a Folha de S.Paulo, na edição de 1° de maio, com o editorial ‘Decisão irresponsável’.

As duas referências jornalísticas cumpriram a função tanto de mapearem o fato quanto de fixarem posições a respeito. Todavia, apesar da adequação de ambas as matérias, algo está passando ao largo dos interesses jornalísticos: a reforma política. Diferentemente da vigilante atenção que os principais meios de comunicação destinaram à reforma da Previdência e à reforma fiscal, a reforma política parece tema absolutamente ignorado.

O que torna o descaso mais intrigante é o fato de sabermos que é a reforma política o tema de extremada importância por nela residir o poder de decisão quanto à qualidade de democracia desejada pela sociedade brasileira. Talvez, por isso mesmo, mídia e governo pouco se empenhem em conferir-lhe o destaque devido. Sob o ponto de vista do governo e, por extensão, da classe política em geral, é compreensível que a reforma pretendida em nada de substancial venha a alterar o que nela se perpetua como estrutura viciada. Porém, que igual posição assuma a mídia, é estranho.

De início, põe-se uma questão de perfil diferenciado. É admissível que projetos de reformas previdenciária e fiscal se façam objeto de discussão e decisão da classe política. Até porque as alterações processadas em ambas as reformas em nada ultrapassaram a mediania de procedimentos que qualquer contador estaria habilitado a realizar. Tudo não passou de mero ajuste de caixa, com pretenso revestimento de astuta retórica, seja de redutos partidários da oposição, seja daqueles ligados à base de sustentação do governo.

Igual tratamento, contudo, não pode merecer o que venha com a proposta de reforma política, a menos que esta, como as outras, se torne – e assim parece ser – simples readequação de interesses corporativos atrelados à composição dos quadros partidários.

Decisão da sociedade

Ao oferecer-se a oportunidade de alterações nas regras de condução do processo político de uma nação, torna-se imoral e ilegítimo que o corpo societário não seja convocado a manifestar-se. Isto significa dizer que caberia aos meios de comunicação amplo acompanhamento das sessões nas quais políticos estão formulando suas proposições, situação absolutamente inexistente até o presente momento, afora raras transmissões da TV Senado.

Vamos, todavia, mais a fundo na questão. Será legítimo ao político eleito decidir sobre as regras que irão mantê-lo no lugar? O cargo não lhe pertence. É apenas uma concessão do cidadão-eleitor. A este sim compete julgar e decidir se as regras vigentes estão (ou não) em desacordo com suas exigências e expectativas. Somente um plebiscito, após amplo debate nacional, no qual questionamentos fundamentais fossem propostos, traria consigo a firmeza ética da qual necessita qualquer democracia madura e efetiva. No Brasil, entretanto, plebiscito é instrumento inexistente. Tudo é delegado a ‘representantes’ que sempre decidem após haverem ‘consultado’ suas ‘bases’.

Se houvesse no Brasil a prática de uma real democracia, não seria, por exemplo, interessante saber se cada cidadão concorda com o sistema político que o rege? Nesse caso, a título de exercício, poderíamos sugerir a seguinte sondagem:

1. É indispensável a existência de vereadores e deputados federais? Não seria possível, a exemplo de tantos outros países, haver apenas duas categorias: deputados estaduais e senadores?

2. Por que não se fixarem exigências qualitativas para candidaturas? A noção de democracia no Brasil parece muito confundir-se com o ‘vai-quem-quer’, o que muito alimenta a fome de aventureiros e carreiristas.

3. Será que deve ser mantida a possibilidade do aos 16 anos, experiência que, no planeta, continua sendo única?

4. Só com vereadores, a nação gasta, por ano, 4,8 bilhões de reais. Com ou sem ironia, será que a democracia exige tanto?

5. Não seria mais coerente a existência de regras delimitadoras para candidaturas? Por exemplo: para governador, a exigência quanto a já haver sido prefeito; para senador, a necessidade de haver sido deputado; para presidente, a obrigação de haver sido governador e senador (ou pelo menos, um dos dois).

6. Será eticamente correto o cargo-sombra de ‘suplente’, considerando que alguém jamais votado – e, muitas das vezes, sequer identificado antes – assumir a vaga do eleito?

As proposições (ou provocações) aqui elencadas – afora outras tantas que a essas se somariam – tentam apenas ilustrar a possibilidade de lançar-se sobre a democracia um olhar mais cuidadoso, em benefício da preservação, ou até aperfeiçoamento, daquilo que, para a sociedade brasileira, já teve um preço bastante caro e por muitos foi pago inclusive com a própria vida. Na mesma perspectiva crítica, deseja-se assinalar que liberdade requer princípios, disciplina, limites. É em nome, pois, desse cuidado e apreço pela democracia brasileira que se está cobrando uma atuação efetiva dos meios de comunicação, no sentido de que iniciem um processo deflagrador de reais debates, a fim de que a terceira ‘reforma’ não tenha desfecho pífio, a exemplo das anteriores.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro