Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os espiões que queriam saber demais

Ponto para os teóricos da conspiração: nós – indivíduos, empresas e governos – somos vigiados de formas muito mais amplas do que poderíamos pensar. O recente escândalo de espionagem envolvendo os governos norte-americano e britânico é de deixar George Orwell e seu ‘grande irmão’ de cabelo em pé. Segundo especialistas reunidos em evento na Universidade Federal do Rio de Janeiro na semana passada, as denúncias de Edward Snowden, ex-consultor da agência nacional de segurança dos Estados Unidos, a NSA, jogam luz sobre práticas de espionagem eletrônica que colocam em risco as bases de segurança da internet e tornam ainda mais central o desenvolvimento de tecnologia nacional na área, para que o país não seja mera vítima nessa guerra de informação.

Embora possa ter pegado alguns desprevenidos, a espionagem em si não chega a ser uma surpresa – a prática existe desde que o mundo é mundo e certamente teria grande papel na era de informação e terrorismo em que vivemos. “Esse é o papel dos serviços secretos, não é novidade; nosso papel é trabalhar para preservar nossas informações sigilosas”, avalia o engenheiro Luís Felipe Moraes, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ).

Porém, o episódio não tem nada do charme do agente James Bond nem do idealismo de Carrie Mathison – é, na verdade, bem alarmante e sintomático. Primeiro, por abranger países ‘amigos’ e sem qualquer histórico de ameaça, como o Brasil. Mais do que isso, pelas questionáveis estratégias adotadas. “Com a desculpa de combater o terrorismo, a NSA corrompeu o sistema da internet com acordos e chantagens que levaram à introdução de ‘portas’ ocultas, backdoors, em softwares e hardwares, para facilitar seu monitoramento e driblar os sistemas de segurança”, comentou. “Essas adulterações comprometem a privacidade da rede, de dados pessoais a transações internacionais.” 

Para quem é monitorado, mas está por fora: Snowden vazou, desde junho, diversos documentos secretos que revelam, até o momento, detalhes sobre um programa que compila registros de ligações telefônicas nos Estados Unidos e sobre outro capaz de acessar servidores das maiores empresas de internet, como Google, Apple e Facebook. Além disso, revelou práticas norte-americanas de espionagem de países da União Europeia e da América Latina – inclusive com o monitoramento da presidente Dilma Rousseff. O Brasil exigiu explicações de Washington e até cancelou o encontro entre os líderes dos dois países, marcado para outubro. Nesta terça-feira (24/09), a presidente criticou severamente o episódio na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.

O discurso da presidente Dilma Rousseff na Assembleia geral da ONU

José Xexéu, engenheiro e professor de criptografia do Instituto Militar de Engenharia (IME), lembrou que as suspeitas de espionagem do governo brasileiro não são novas. “As desconfianças mais claras vêm desde a década de 1980, quando nossas posições comerciais pareciam ser pré-conhecidas em negociações internacionais”, relembrou. Com a internet, segundo ele, a proteção das informações ficou, de forma geral, ainda pior. “Hoje é muito mais fácil interceptar mensagens no ambiente virtual, ainda mais se considerarmos que o nível tecnológico deles é muito mais avançado”, afirmou. “O conceito de internet é liberdade e talvez isso tenha algo de proposital nesse sentido, pois nós éramos muito menos vulneráveis antes.”

Mais do que reclamar, agir

Moraes avalia o cenário atual e não titubeia: a segurança na internet está podre e a área precisa ser ‘refundada’. “A NSA corrompeu a internet, sabotou a estrutura de segurança em sua base, então ninguém está seguro”, afirmou. “A questão é: o que fazer a partir de agora? Estamos diante de um problema político acima de tudo, que envolve soberania. É necessário reescrever o capítulo de segurança da internet, a comunidade acadêmica de todo o mundo está muito abalada.”

Para ele, a única alternativa para o Brasil é investir na geração de conhecimento nacional na área. “Não adianta ficar zangado, é preciso agir”, avaliou. “Temos que ter um projeto de governo, muito investimento; o país não pode mais comprar pronto o conhecimento, principalmente porque tem competência para romper essa barreira e produzir isso aqui dentro.” 

O cientista da computação Rodrigo Assad, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, defende que o Brasil precisa dominar as tecnologias digitais para reforçar seu papel internacional. “Engraçado como se fica abismado quando americanos invadem celular, rastreiam as pessoas. Eu faço isso em Pernambuco, fiquem assustados comigo. E invistam na tecnologia nacional, porque o Brasil pode fazer o mesmo”, completou. “A questão é: vamos fazer? Não é fácil e o custo é elevado. Precisamos estimular as empresas nacionais.”

Matéria do Fantástico sobre as denúncias de espionagem norte-americana no Brasil

Segundo o cientista da computação, é preciso atuar em duas frentes: investir em empresas de tecnologia e em um trabalho de inteligência que melhore nossa capacidade de armazenamento e processamento de informação.

O próprio Assad é um dos fundadores da Usto.re, empresa especializada em armazenar dados em nuvem que poderá atender, em breve, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, além de contribuir para o aprimoramento da capacidade nacional de processamento de dados. 

Assad lembrou que a origem de muitas das empresas de tecnologia norte-americanas – e do próprio polo tecnológico conhecido como vale do silício – está no departamento de defesa daquele país. “Apesar de ter se desenvolvido de forma acadêmica e particular, essa área nunca deixou de ser estratégica, com grandes investimentos e visão estratégica”, explicou. “Países como China e Rússia dominam parte dessas tecnologias, nós não fizemos nosso dever de casa e precisamos decidir agora se vamos entrar na briga ou continuar assistindo como colônia.” À guisa de comparação, a China tem até um buscador nacional que rivaliza com o Google, o Baidu

O Brasil já discute medidas para diminuir a fragilidade de sua segurança, como obrigar serviços internacionais a armazenar seus dados brasileiros em território nacional e criar serviços on-line nacionais. “O país poderia privilegiar a utilização de softwareslivres, de código aberto, menos sujeitos à existência de backdoors e estimular a criação de mecanismos de regulação internacional, por exemplo”, avaliou Moraes. “A questão principal, no entanto, é o domínio da tecnologia: se continuarmos dependentes, nunca estaremos seguros.”

O ex-assessor do gabinete de segurança institucional do governo federal, Antonio Carlos Monclaro, vê um possível efeito positivo das denúncias: o aumento de recursos e de atenção para a área de segurança e inteligência digitais. “O Brasil precisa pular etapas e entrar de cabeça na era da informação, embora não tenhamos passado por outras fases da revolução industrial”, avaliou. “Existe uma fraqueza crônica nas nossas defesas cibernéticas em áreas críticas, como energia e petróleo; a segurança digital foi deixada um pouco de lado em benefício de outras questões urgentes de nossa sociedade. Essa é a hora de retomar esse investimento.” 

Ele lembrou que o debate sobre o desenvolvimento de tecnologia nacional vem da década de 1970. “Quando houve discussão sobre a necessidade de instalar no país uma fábrica de chips, acabou-se concluindo que era mais barato comprar de fora”, afirmou. “Não existe salto quântico, é preciso passar por essa fase em que desenvolver no Brasil é mais caro; a engenharia não pode continuar a ser repetidamente derrotada pela economia do curto prazo.” 

Moraes ressaltou ainda que, por enquanto, a rede está presente em apenas uma pequena parte dos objetos que utilizamos em nosso dia a dia, mas a realidade tende a mudar. “Hoje a segurança já é pequena. Se nada for feito, quando todas as coisas tiverem internet, nossas geladeiras e carros, a privacidade será ainda menor.”

Abra o olho!

Como a temática da segurança eletrônica é importante para todos nós que acessamos a rede, a CH On-line fez uma seleção de textos que ajudam a entender a polêmica e refletir sobre essa discussão:

>> NSA surveillance goes beyond Orwell’s imagination (em inglês), The Guardian.

>> Backdoor dealings (em inglês), The Economist.

>> The Vulnerabilities Market and the Future of Security (em inglês), Forbes.

>> Microsoft handed the NSA access to encrypted messages (em inglês), The Guardian.

>> More from Edward Snowden interview: ‘Apple, Microsoft in the bed with NSA’ (em inglês), Breitbart.

>> Mande sua chaveRevista Piauí.

>> Liberdade nas nuvensRevista Piauí.

>> Revealed: how US and UK spy agencies defeat internet privacy and security(em inglês), The Guardian.

>> Grampearam o Mundo (e tem gente achando normal)Revista Pittacos.

>> Espionagem norte-americana: siga o dinheiro!, Blog do Gindre.

>> Nós somos a alta tecnologia da espionagem globalCarta Maior.

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Marcelo Garcia, do Ciência Hoje On-line