A tentativa considerada pioneira de definição do cinema documentário é uma fórmula sintética do produtor e cineasta escocês John Grierson (1898-1972), apresentada em um texto (“The Documentary Producer”) de 1933 para a revista Cinema Quarterly: “Creative treatment of actuality”. “Actuality”, muitas vezes traduzido para o português como “realidade”, na verdade significa “atualidade” e faz referência às primeiras formas de cinema não ficcional, reunidas nos chamados “travelogues”, registros exóticos de viagens pelo mundo afora, como os realizados pelos primeiros operadores Lumière e Pathé, ou nos instantâneos filmados e recolhidos nos nascentes cinejornais.
Nota-se, assim, que já na origem do gênero questiona-se a relação entre o documentário e o jornalismo, no caso o filmado. No século 21, a mesma questão marca presença, com a pervasiva exigência da câmera entre os instrumentos mobilizados pelo repórter em ação na era do jornalismo digital e o novo status alcançado pelo documentário na indústria audiovisual. O mercado exige cada vez mais que os profissionais de imprensa dominem os fundamentos audiovisuais, assumindo para si a responsabilidade não apenas da reportagem impressa, mas também a fotográfica e a gravada.
Será, assim, todo repórter um potencial documentarista e todo documentarista um candidato a repórter? Estará o documentário destinado a ser o jornalismo por excelência do novo século? É o que nos leva a refletir, por exemplo, o caso recente da notícia com as revelações de Edward Snowden sobre o monitoramento pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês) das comunicações telefônicas e online de cidadãos americanos e não americanos.
Todo texto tem contexto
Aqueles “furos” do jornalismo im- presso traziam como coautora a documentarista americana Laura Poitras. Ela dividia com Barton Gellman a assinatura da revelação pelo Washington Post do chamado sistema PRISM e também coassinava no diário britânico The Guardian, ao lado de Glenn Greenwald e Ewan MacAskill, a reportagem que identificou Snowden, ex-funcionário da CIA e do próprio NSA, como o responsável pelo vazamento daquelas informações confidenciais à imprensa. Além do texto escrito, o site do Guardian apresentava uma entrevista filmada de Snowden, na qual Poitras é creditada como “cineasta” e Greenwald como “entrevistador”. Entrevistada dias depois pela revista online Salon, Poitras explicou como foi contatada independentemente dos outros repórteres pelo whistleblower.
Para todo texto, um contexto. Laura Poitras foi procurada, pois desenvolve uma filmografia documental dedicada à Guerra do Terror e suas consequências externas e internas para os Estados Unidos pós-11 de setembro. Ela trabalha no momento no terceiro filme de uma trilogia da qual fazem parte My Country, My Country (Meu País, Meu País), indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2006, sobre o impacto da guerra do Iraque no cotidiano de pessoas comuns, e The Oath (O Juramento), 2010, no qual retrata dois ex-militantes da Al-Qaeda ligados antes por laços de amizade, um já em liberdade no Iêmen, o outro ainda detido em Guantánamo.
Em agosto do ano passado, Poitras editou como um documentário curto uma das histórias que farão parte de seu próximo filme. Lançado dentro da série Op-Docs do jornal The New York Times online, The Program (O Programa) fecha o foco em outro whistleblower, anteriormente revelado pela imprensa, o matemático e analista de códigos William Binney, que em outubro de 2001 pediu demissão depois de 32 anos de serviços prestados à NSA, revoltado com a utilização interna nos Estados Unidos de um programa de coleta e triagem de informações que ajudou a desenvolver para uso internacional pela NSA. Foi devido a esse filmete que Snowden decidiu confiar-lhe o próprio vazamento.
Não me lembro de episódio similar em que uma documentarista assinou reportagens na capa de dois dos mais conceituados diários de língua inglesa. Poitras é, assim, a exceção, não a regra. Apontará uma tendência? Difícil apostar. Em uma entrevista de 2008 ao site Still in Motion, ela comenta o status híbrido de sua atividade: “Sinto como se caísse entre as fendas com o trabalho que estou fazendo agora, pois é similar a parte do trabalho feito por jornalistas da imprensa escrita, com os autores da New Yorker, como [George] Packer e Lawrence Wright. Eles estão enfrentando esses temas contemporâneos. Sinto que estou fazendo algo parecido em filme”.
Narrativas distintas
E o faz agora também em texto. Mas o fato de Laura Poitras atuar como documentarista e jornalista no caso do “furo” Snowden/Prism não equipara as duas atividades. A mesma investigação está gerando dois tipos distintos de narrativas não ficcionais: um episódio do filme que encerrará a trilogia, ainda sem título e data de lançamento, e as duas reportagens e a entrevista online de junho.
Como escreveu Fernão Ramos em Mas afinal… O Que É Mesmo o Documentário? (Editora Senac, 2008), “o documentário (grifo do autor) não está vinculado a acontecimentos cotidianos de dimensão social que denominamos notícia (idem)”. Retornando a Grierson, por mais problematizada que tenha sido sua tentativa de definição (Brian Winston à frente), a essência do jornalismo reside na “actuality”, isto é, no registro quente dos acontecimentos, enquanto inexiste documentário sem “creative treatment”.
Cabe argumentar, claro, que tampouco a narrativa jornalística prescinde de um tratamento criativo do material bruto. A questão aqui é de prioridade e ênfase. Os compromissos do jornalismo e do documentário são distintos. A reportagem mira o presente, enquanto o documentário almeja a perenidade. O pacto ético jornalístico tem entre seus elementos fundamentais a busca do equilíbrio e da imparcialidade. O pacto documental, mais centrado no tratamento autoral da narrativa, não.
Retornando ao caso Snowden como exemplo, Poitras é jornalista ao revelar a notícia da identidade do whistleblower e do amplo monitoramento pela NSA e é documentarista ao retrabalhar o mesmo personagem e a mesma informação sob o formato autoral e dramatizado para seu work-in-progress cinematográfico. O mesmo registro documental, por exemplo, a entrevista filmada de Snowden em seu refúgio em Hong Kong, serve assim a dois tipos de discursos – a reportagem, escrita e audiovisual, e o documentário –, mas o status é distinto. O depoimento é a obra, no primeiro caso, e matéria-prima para a obra futura, no segundo.
Um dos principais documentários brasileiros dos anos 2000 serve-nos também como exemplo revelador. Para realizar Ônibus 174 (2002), José Padilha lançou mão da mais ampla gama de registros audiovisuais de uma tragédia policial que parou o Rio de Janeiro em junho de 2000. Grande parte do arquivo de imagens e sons por ele mobilizado é da cobertura jornalística feita ao vivo pelas TVs. O material de reportagem torna-se assim material bruto para o documentário. Mais: a própria presença no episódio do aparato midiático, originador do arquivo, tem seu papel examinado pela narrativa fílmica. Como escreveu Esther Hamburger, “o filme de José Padilha propicia elementos que estimulam a reflexão sobre o ato de representar, na televisão e no cinema. O cinema retrabalha o material produzido pela cobertura televisiva, com a temporalidade e o estranhamento que a tela grande e a sala escura permitem, para contextualizar o evento e seus personagens” (“Políticas da Representação: Ficção e Documentário em ‘Ônibus 174’”, em O Cinema do Real, Cosac Naify, 2005).
Conceitos em aberto
Talvez mais adequado que indagar se o melhor do jornalismo se encontrará no documentário neste século 21 seja acompanhar como evoluirá diante da “revolução digital” a relação entre essas duas formas narrativas ancoradas no real. É o que propõe Julio Carlos Bezerra na dissertação de mestrado “Documentário e Jornalismo: Propostas para uma Cartografia Plural” (UFRJ, 2008). Como nota Bezerra, “o grande problema das discussões em torno dessa relação entre jornalismo e documentário é que elas parecem ter em um horizonte próximo uma visão tanto de um quanto do outro como estruturas estanques, impermeáveis e fechadas. Mas documentário e jornalismo são conceitos em aberto. Nem todos os filmes classificados como documentário se parecem entre si, assim como existem muitos e diferentes tipos de reportagem. Documentários e reportagens não adotam um conjunto fixo de técnicas, não tratam de apenas um conjunto de questões, não apresentam apenas um conjunto de formas ou estilos”. De fato, formas dinâmicas e historicamente determinadas muito os aproximam, assim como muito os distanciam.
A era digital catalisou mudanças de paradigmas tanto para o documentário quanto para o jornalismo. Se para ambos há um avanço democrático na multiplicação potencial de seus autores, erodiram-se os alicerces tradicionais de seus sistemas de difusão. Um desafio comum é evitar a paralisia pela perplexidade diante desses novos tempos.
É curiosamente um jornalista tornado documentarista que divisa, no contexto brasileiro, a luz no fim do túnel. Num raríssimo texto reflexivo sobre sua atividade, escrito ainda nos idos de 1992 por encomenda do crítico Paulo Paranaguá, Eduardo Coutinho apresenta seu programa para o documentário se manter relevante: “Filmar sempre o acontecimento único que nunca aconteceu antes nem jamais voltará a acontecer. Mesmo que seja provocado pela câmera. Mesmo que não seja verdade. Sem este sentimento de urgência em relação ao que se vai perder se não for filmado simultaneamente, para que fazer cinema, atividade no fim das contas lenta, esgotadora e pouco rentável?” Me pergunto se nosso jornalismo terá hoje também um discurso similar para servir-lhe de bússola.
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Amir Labaki é fundador e diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. O crítico de cinema e curador também atuou como diretor técnico do Museu da Imagem e do Som de São Paulo.