São antigas as idiossincrasias das elites luso-brasileiras contra Hipólito da Costa e seu periódico, o Correio Braziliense.
O embargo noticioso do dia 1º de junho de 2008, do qual participou a maior parte da grande imprensa (exceto a Folha de S.Paulo e o homônimo do Distrito Federal), não deve surpreender a ninguém: é seqüela da antiga enfermidade que prolifera em ambientes autoritários e voluntaristas. Submissos não gostam de reconhecer que são submissos, razão pela qual tantas tentativas libertárias são condenadas ao fracasso simplesmente porque não encontram eco junto àqueles que a ela deveriam aderir.
O projeto de fazer um jornal em Londres foi um estratagema simples, engenhoso e revela a criatividade do futuro jornalista: como seria impossível imprimir um jornal livre da censura em território português (ou nas colônias), a solução seria imprimi-lo longe das censuras, longe principalmente do Santo Ofício (que não era apenas uma agência de censura, era também um aparelho repressor de grande eficácia).
Em Londres seria impossível ordenar o desmantelamento do prelo e das caixas de tipos (como acontecera 59 anos antes no Rio de Janeiro, com a oficina de Antonio Isidoro da Fonseca). A Coroa não teve outra alternativa senão recolher-se diante do poderio da Inglaterra e enfrentar Hipólito com as armas que inventou: financiou diversos periódicos rivais impressos na mesma Londres (O Investigador Português em Inglaterra, 1811-1819, e o Campeão Português, 1819-1821). Imprimi-los em Lisboa não teria o charme do exílio, da clandestinidade e revelaria de imediato a influência do Rei e do clero atrás da jogada.
Cômoda resignação
A morte prematura de Hipólito da Costa (aos 49 anos, em 1823) permitiu que a sua primeira biografia fosse escrita três décadas depois por um desafeto e competidor frustrado, José Liberato Freire de Carvalho, vencido em diversas polêmicas com Hipólito na imprensa emigrada. Forjava-se assim a matriz de ressentimentos que se juntaria às idiossincrasias produzidas pelas forças reacionárias, antimaçons que abominavam Hipólito por ter rompido o circulo de giz desenhado pela Inquisição e, ao mesmo tempo, propagado as idéias liberais que trouxe da visita aos Estados Unidos e do exílio na Inglaterra.
Também no campo dito ‘progressista’ encontrou Hipólito evidente má vontade na pessoa do romancista, historiador e panfletário Camilo Castelo Branco, ferrenho adversário da Inquisição que por despeito ou neurose (provavelmente pela combinação de ambos) não queria reconhecer a importância da cruzada antiinquisitorial empreendida com tanto sucesso por Hipólito da Costa, principalmente na sua obra bilíngüe Narrativa da Perseguição (Londres, 1811).
No primeiro centenário da imprensa brasileira (1908), nosso patriarca também sofreu um embargo que alguns atribuem à fatalidade e outros à mesma ‘Síndrome Anti-Hipólito’. A respeitabilíssima Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro programara uma edição especial sobre a imprensa brasileira, em dois volumes. Só saíram dos prelos duas partes do primeiro volume, sem qualquer alusão ao redator do Correio Braziliense. O projeto não se completou porque o material restante teria sido consumido num incêndio nas instalações da Imprensa Nacional. A justificativa é verdadeira. Mas não explica por que uma instituição com os recursos, o renome e as responsabilidades do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tenha se resignado aos fados e jamais completado um projeto que esclareceria definitivamente a paternidade da nossa imprensa.
Comemoração antecipada
É preciso não esquecer que até meados do século passado não era de bom-tom atribuir a Hipólito e ao seu Correio Braziliense o papel de precursores. Exemplo deste preconceito de caráter nitidamente ideológico e clerical é a Contribuição à História da Imprensa Brasileira, 1812-1869, que a partir da periodização citada no título desconsidera liminarmente a obra hipolitana.
A própria escolha do primeiro Dia da Imprensa durante o regime Vargas (10 de setembro, data de fundação da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro diário oficial) denota o viés reacionário que presidiu a montagem de uma efeméride corporativa, concebida exclusivamente para agradar os profissionais de imprensa.
De Getúlio Vargas pode-se dizer muita coisa, jamais que seria submisso à igreja católica. Era um positivista, mas também um pragmático; preferia fazer pequenas concessões à igreja (como a construção do Cristo Redentor, no Corcovado) do que hostilizá-la inutilmente. Recorde-se que o primeiro redator da Gazeta do Rio de Janeiro, Frei Tibúrcio José da Rocha, era religioso.
Como se sabe, em 2000, para satisfazer a pressão das entidades de jornalistas e da bancada de deputados gaúchos da Câmara Federal, o Dia da Imprensa foi finalmente antecipado de modo a fazer justiça a Hipólito da Costa [mais detalhes em Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, volume XXX, tomo 1, pp. 437-465, ‘Luz e Trevas, Estrangeirados e Inquisição‘, deste observador].
História escondida
É longa a história clínica – ou anamnese – da ‘Síndrome Anti-Hipólito’. A comemoração não foi esquecida, nem evaporou-se casualmente. Foi extirpada fria e conscientemente com a mesma e suave truculência empregada pelo Kremlin para reescrever a História e as biografias dos adversários.
Os mentores imaginavam que sua manipulação não chamaria a atenção. Menosprezaram a capacidade da imprensa como poder autônomo e não-corporativo para resistir às manipulações, inclusive intestinas, intramuros.
Tentaram emascular o bicentenário e o bicentenário resistiu. Não houve festa nem libações, é verdade, mas ficou a ressaca e a desagradável convicção de que nossa imprensa (ou aqueles que se arvoram como seus donatários) não conhece sua história nem quer conhecê-la, portanto está condenada a repeti-la. Continuamente, ad nauseam, como caricatura. Um dia aprenderá.
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