Em linhas gerais, o processo que sustenta a criação e consolidação dos direitos civis nos diversos países carrega, lamentavelmente, uma enorme série de conflitos que se inicia na seara política e se transfere, pouco a pouco, para as demais esferas sociais. Não é de se estranhar, portanto, que há tempos o sociólogo T.H. Marshall tenha apresentado um conceito de cidadania envolvendo três dimensões: a saber, a política (direito de votar e ser votado), a civil (direito de ir e vir, de liberdade de expressão, liberdade de associação etc.) e social (acesso à educação, emprego, informação etc.). Ou seja, a consolidação dos direitos civis – e da cidadania, por consequência – somente ocorre quando esses três níveis estão completos e em pleno funcionamento, mesmo que seja à custa de distensões que, no extremo, chegam a guerras internas.
Nesse aspecto, tais crises sazonais ao longo de todo o processo cobram inúmeras vezes a tomada de posição dos diversos segmentos da sociedade. Dito de forma distinta, essa reorganização social a partir de critérios envolvendo direitos civis exige que os inúmeros setores que compõem a sociedade assumam claramente se estão contra ou a favor do processo, se possuem críticas aos procedimentos ou ideologias, que críticas são essas. Quando isso não ocorre ou quando ocorre de maneira difusa, onde os segmentos não assumem por completo sua opinião, os direitos civis ficam por completo comprometidos, tornando-se pífios ou meros arremedos, como é o caso brasileiro.
Num rápido levantamento histórico, o paradoxo do período monárquico de nosso país indica, por exemplo, que os primeiros 67 anos de nossa existência enquanto país independente nos deram uma Constituição (1824) e um Código Comercial (1854) que não citavam a escravidão e um Código Penal (1832) que a indicava, anotando, inclusive, as penas aos cativos. Não existia Código Civil e nas leis aonde as relações e ordenamento social apareciam, essas ignoravam solenemente a existência de escravos; já a legislação punitiva, essa descrevia muito bem. Não sei se todos alcançam esse absurdo paradoxo: um dos elementos que auxiliam enormemente a organização de uma sociedade é a instituição denominada Lei Constitucional que, em nosso caso, negava (por omissão) a existência da realidade.
Voto obrigatório
Em sequência, na virada do Império para a República, uma ação (in)digna de nota nos remete a ninguém menos que o famoso Rui Barbosa. O grande civilista, o “águia de Haia”, deu ordens expressas nos primeiros meses da Proclamação do novo regime para que todos os documentos relativos à escravidão fossem destruídos e o motivo era simples: na medida em que, poucos meses antes, a escravidão acabara com a Lei Áurea e, com o fim da monarquia, todos se tornaram pessoas judicialmente iguais e então era quase inevitável uma enxurrada de processos por danos causados pelo cativeiro. Não custa lembrar que o próprio governo brasileiro possuía seus escravos (eram chamados de “escravos da nação”), além de assumir penalmente as responsabilidades desde 1832. Assim, uma das primeiras medidas adotadas pela res publica (“coisa de todos”) e elaborada pelo grande “civilista” Rui Barbosa foi a retirada de direitos humanos e sociais da pauta de parte significativa da população por meio de uma ação legal.
Encerrando esse sucinto levantamento, quando finalmente apareceu nosso primeiro Código Civil (1916), esse posicionava a mulher como naturalmente inferior ao homem numa época em que em diversos países já se adotava o voto feminino.
Concomitantemente, as pressões sociais também cobravam reformulações. Porém, numa linha de pensamento adotada por nossa elite política e intelectual à época (e que infelizmente pouco se alterou até os dias de hoje), tomou-se por norte uma fórmula autoritária onde os direitos civis são adotados a partir de um controle estatal coadunado com interesses não-populares. Para que todos possam entender, vamos a alguns exemplos. Joaquim Francisco de Assis Brasil, principal responsável pelo formato de nossas eleições, defendia que a sociedade brasileira não era civilizada; com isso e por isso a presença na zona eleitoral na hora do voto deveria ser obrigatória, como forma de se educar essa população que vive na barbárie. Mulheres e homens passaram a votar obrigatoriamente. E é o que ocorre até hoje.
“Circulação das elites”
Francisco José de Oliveira Vianna, fundamental elaborador das Leis Trabalhistas, rascunhou a divisão em inúmeros sindicatos para uma única classe de trabalhadores e também a contribuição sindical, forma interessante de manter na esfera de influência estatal (afinal, é quem recolhe o dinheiro) todos os representantes das profissões.
Por fim, nessas sucintas citações, podemos incluir a necessidade de que qualquer pessoa no Brasil seja obrigada a ter um representante judicial (advogado ou defensor) que fale em seu nome, salvo nas ações que passem exclusivamente pelos denominados Juizados Especiais. Frente a isso, algumas curiosidades: a primeira, que os Juizados Especiais foram criados à revelia de parte significativa da área jurídica brasileira (que não os desejava); a segunda, que a definição para o que vai e o que não se processar num juizado diz respeito a valores, ou seja, não se trata de uma discussão de algo que se fundamenta em princípios civis, mas sim, em uma lógica comercial; por último, mais recentemente, tentou-se simplificar o fim dos casamentos afirmando-se que poderiam ser resolvidos diretamente nos cartórios (na inexistência de bens e herdeiros). Novamente, o corporativismo falou mais alto e o projeto foi modificado. Em resumo, como os direitos civis são fundamentados nos direitos individuais, em um país aonde os indivíduos não podem falar em seu próprio nome, então o fundamento é quebrado e esses direitos desaparecem – conforme a clássica filosofia política.
Evidentemente, nessa altura do texto o leitor se pergunta: e a imprensa, em todo esse processo? Para entendermos sua atuação, é necessário lembrarmos algumas coisas. A primeira delas – e parecerá algo óbvio – é que seu interlocutor e público é um conjunto de pessoas letradas que, ao longo do Império e por boa parte do século 20, constituiu-se da menor parte da sociedade e integralmente sua elite política e econômica. Em outras palavras, na quase totalidade da história de nosso país como nação independente, nossa imprensa (ao menos, a assim chamada grande imprensa) somente conheceu e dialogou com os autores de todas as ações anteriormente citadas e que em nada contribuíram para a consolidação dos direitos civis. Certa “popularização” apenas ocorreria com o surgimento do rádio e, muito mais à frente, da televisão. Contudo, ainda assim, inúmeros foram os momentos em que a posição assumida pelos órgãos de imprensa variou tão somente na troca de um grupo governante por outro: no conceito de Vilfredo Pareto uma espécie de “circulação das elites”. Ou seja, a grande imprensa brasileira se mobiliza na medida em que um determinado segmento governante de alguma forma a incomoda; quando a troca acontece, paulatinamente os denominados “meios de comunicação” se acomodam, retornando à posição anterior. Nesse aspecto, as páginas de jornais e revistas, os telejornais, enfim, pouco ou nada contribuem de forma sincera para os direitos civis no Brasil.
De onde saem essas pessoas?
Um ótimo exemplo, nesse sentido, é a forma como são narradas (principalmente quando há uma transmissão ao vivo) as manifestações que se sucedem desde junho e, mais particularmente, a dos professores na cidade do Rio de Janeiro. Tive o (des)prazer de assistir a um telejornal onde a apresentadora, velha integrante do cast de uma grande emissora de televisão, apesar das afirmações da repórter que transmitia do local da manifestação dizendo que eram os policias que agrediam indiscriminadamente as pessoas, insistia para que a pobre repórter procurasse “vândalos” no meio da multidão. Foi uma das cenas mais irreais que pude ver. Em sequência, no dia seguinte, novas imagens apresentavam policiais “plantando” provas ao lado de um adolescente que participara da manifestação em apoio aos professores. Para esse caso, o texto jornalístico se faz com palavras como “talvez”, “investigação”, “averiguação”, entre tantas, para descrever aquilo que a filmagem tornada pública na internet inquestionavelmente mostrava.
Em resumo, quando a população se manifesta, essa sociedade é apresentada como “um bando de vândalos”; quando é a ação do Poder Público, o ato merece averiguação, investigação, dúvida. Repete-se o fundamento de Assis Brasil, Oliveira Vianna, dentre tantos outros: a sociedade brasileira vive na barbárie e o Estado deve “pedagogicamente” civilizá-la – com o devido aval da imprensa, é claro.
Com uma história que se repete e uma imprensa que se repete com ela, tantas vezes tenho a impressão de que vejo cenas e leio textos do século 19 ou princípios do século 20 quando, para meu espanto, estamos no décimo segundo ano do século 21. Nisso tudo, tenho uma enorme curiosidade quanto a um problema que, dentro de minhas limitações intelectuais, torna-se insolúvel: essas pessoas que escrevem nos jornais e apresentam os telejornais, pessoas que falam nas rádios, pessoas que compõem nossa classe política e econômica, essas pessoas, enfim, que formam nossas elites intelectuais, políticas e econômicas, elas saem de onde? Desse mesmo povo completamente não-civilizado, formado por baderneiros e vândalos? E se saem desse povo, como é que elas crescem e se purificam, se civilizam? Alguém poderia me explicar, por favor?
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Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal de Ouro Preto