Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O inferno por testemunha

Erick Kabendera, 35, jornalista investigativo da Tanzânia, tem sido perseguido após testemunhar contra o maior empresário de comunicações de seu país. O governo ameaça cassar a cidadania de Kabendera, que escreve para os jornais britânicos The Guardian e The Times e para a Economist Intelligence Unit, parte do grupo Economist.

Eu recebi uma ligação de um amigo em janeiro, dizendo que meus pais tinham sido presos. Meu pai tem 77 anos, e minha mãe, 75. Os policiais os interrogaram por mais de 12 horas. Eles tiveram de ir ao cemitério e provar que nossos antepassados nasceram na Tanzânia.

O governo usa isso para nos intimidar: afirma que temos de provar ter nascido mesmo na Tanzânia, senão podemos ser expulsos.

Minha família vive há gerações na Tanzânia, isso é ridículo. Os agentes de imigração disseram aos meus pais que eu estava sendo investigado e podia ter minha cidadania revogada porque havia suspeitas de que eu era um espião dos britânicos. Eles ficaram lá dois dias.

O inferno começou em janeiro, depois que voltei do Reino Unido. Em dezembro do ano passado, fui a Londres para testemunhar contra Reginald Mengi, o maior empresário de comunicações da Tanzânia, dono do jornal tanzaniano “The Guardian”.

Carta ao governo

Mengi estava processando o casal britânico Stewart Middleton e Sarah Hermitage por calúnia e difamação.

O casal tinha uma fazenda em Arusha, uma joint-venture com o irmão de Mengi, Benjamin. Ele quis desfazer a sociedade, o casal não quis. Passaram a ser perseguidos, até que foram expulsos do país.

O jornal de Mengi dava matérias todos os dias sobre o caso, defendendo Benjamin.

O casal voltou para o Reino Unido e começou a escrever um blog, em que acusava Mengi de usar seu jornal para proteger o irmão. Mengi, que é próximo do governo, os processou na justiça britânica.

O casal precisava de um jornalista que tivesse trabalhado no jornal para testemunhar que ele não era independente. Eu trabalhei lá por um ano. Decidi testemunhar.

Mengi perdeu o processo.

Quando voltei para a Tanzânia, o governo ameaçou cassar minha cidadania, dizendo que podiam provar que nem eu, nem meus pais havíamos nascido na Tanzânia. Se isso acontecer, eu vou ficar apátrida, porque eles tiram meu passaporte e me expulsam.

Desde que voltei, minha casa foi arrombada quatro vezes –reviraram todos os meus documentos e meu computador. [Em maio, o Ministério do Interior justificou a ação contra Kabendera e sua família dizendo que havia “irregularidades” no passaporte do jornalista, negando ainda qualquer relação com o caso Mengi].

Eu gastei centenas de dólares para instalar câmeras de segurança e arame farpado na minha casa, em Dar es Salaam.

Em abril, resolvi sair do país, estava com medo de ser preso. Fiquei três meses fora, no Reino Unido e na África do Sul.

A ONG “Repórteres Sem Fronteiras” mandou uma carta para o governo, dizendo que a perseguição tinha de parar. Se não fosse a interferência do Reino Unido e de entidades de direitos humanos, estaria morto ou fugindo para o aeroporto.

Direito de ficar

Existe uma imagem enganosa de que a Tanzânia é uma ilha de democracia na África.

Acabaram de fechar dois dos jornais de maior circulação no país. Um deles, o “Mtanzania”, foi acusado de “incitar o ódio”, porque publicou uma foto de policiais com cachorros perto de mesquitas, quando houve protestos dos muçulmanos em julho. Mas era verdade, os policiais foram lá mesmo com cachorros.

O outro, “Mwananchi”, foi fechado porque publicou uma reportagem sobre os salários dos servidores públicos. Isso é um absurdo.

Um dos meus melhores amigos, o jornalista Absalom Kibanda, foi brutalmente atacado em março. Tentaram arrancar um dos olhos dele e cortaram dois dedos com uma machete.

Ele vinha criticando o governo. Foi o quinto atacado em seis meses.

Meus amigos dizem que eu posso ser assassinado, que deveria ficar fora do país até o próximo governo assumir (em 2016). Mas eu não quero deixar a Tanzânia.

Eu tenho o direito de ficar aqui. É aqui que está minha família: minha mulher e meu filho, Cahal. Ele tem 8 meses e adora os Teletubbies.

Mesmo assim, sempre carrego meu passaporte, caso minha mulher me ligue e diga: não volte para casa, eles estão aqui.

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Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, é bolsista do International Reporting Project da Johns Hopkins University