Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Palavras sem algemas

O debate em torno de biografias não autorizadas pelo biografado, ou por parente ainda que distante, começou por maus motivos e tomou impulso por motivos ainda piores.

Uma ação coletiva de gente da música popular por direitos autorais, já razão de desavença na classe, absorveu o problema pessoal de um cantor que fez recolher e proibir sua biografia, e de repente sua tese passou a ser a do grupo amparado em nomes estelares.

Quase automaticamente, o encobrimento de assuntos pessoais transformou-se em interesse financeiro, com propostas de participação do biografado nos pretensos ganhos de editoras e nos direitos autorais de escritores biográficos.

Discutir liberdades e direitos com dinheiro como argumento, mesmo que fosse simples ingrediente, não dá. É medíocre demais e imoral demais. Ou um assunto ou outro. A menos que se queira discutir o sistema ocidental de vida, com a presença do dinheiro em absolutamente tudo. Não é o caso.

Liberdades e direitos são fatores de construção e de exercício da democracia. Sem distinção de sua importância entre níveis culturais, classes econômicas, linhas políticas e indivíduos. O assunto de que se ocupam os cantores e compositores contrários a biografias não autorizadas, portanto, não se limita a biografias, e muito menos a eles e suas conveniências pessoais.

Mau passo

Se há biografias que traçam versões difamatórias, também a biografia correta é apenas uma versão, dada a impossibilidade definitiva de ser onisciente nos enredos de toda uma vida. A diferença, para as correntes que se opõem contra e a favor de biografias não autorizadas, é que os cerceadores caracterizam-se por duas peculiaridades: a negação da prevalência da lei sobre a calúnia, a injúria e a difamação, e a prepotência da pretendida eliminação a priori das liberdades autorais, mesmo que praticadas com cuidado e ética. Muito mais do que autorização e participações financeiras, trata-se de uma forma de negação da própria liberdade de palavra.

Para fazê-los livres ou aprisionados em censuras oficiais ou particulares, do livro ao jornal o pulo é tão pequeno quanto –já vimos– do jornal ao livro. E do jornal e do livro ao teatro, ao cinema, e, se os experimentados mas esquecidos me permitem a lembrança, também à música popular. É sempre assim.

Se consagrada a proibição não autorizada, em livro, do que uma celebridade julgue inconveniente a seu respeito, por que continuaria permitida a mesma publicação, sem prévio consentimento, em jornal e em revista? Ambos com tiragens e repercussão muito mais imediatas e maiores que as do livro. Os vitoriosos da primeira prepotência por certo passariam ao ataque à contradição. E assim em diante, mudando-se apenas as levas de interessados.

A democracia tem dois defeitos básicos, entre inúmeros outros: não é perfeita e não admite brechas. Nela, todo mau passo se multiplica em outros maiores. E jamais são precisos muitos: o precipício nunca é distante.

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Janio de Freitas é colunista da Folha de S.Paulo