O leitor ou leitora que escrutinar o noticiário de quinta-feira (17/10) poderá achar um pouco confusa a descrição das ações do Estado, no Rio e em São Paulo, contra manifestantes acusados de promover depredações a atacar policiais.
Em São Paulo, dos 60 detidos após as manifestações violentas ocorridas na noite de terça-feira, 59 foram soltos por falta de provas e apenas um foi indiciado, por porte de maconha. No Rio, metade dos 190 detidos continuava presa e 27 haviam sido autuados pela nova Lei de Crime Organizado.
A diferença no comportamento das autoridades nos dois Estados, assim como a abordagem da imprensa, dificulta a compreensão do que se passa nas ruas. Basicamente, o governo paulista demonstra estar fazendo um esforço para identificar os adeptos da tática conhecida como “Black Bloc”, para compreender suas motivações e seus objetivos. Já o governo do Rio parece mais preocupado em conter a onda de violência, na tentativa de amenizar o estrago que o fenômeno poderá provocar em suas pretensões eleitorais do próximo ano.
O sistema de inteligência da polícia paulista registrou cerca de 400 suspeitos de protagonizar atos de vandalismo e está estudando seus perfis para tentar identificar lideranças e separar os diferentes grupos que se organizam e se desfazem continuamente durante as manifestações.
Os especialistas reunidos numa espécie de conselho procuram montar um quebra-cabeças em busca de um sentido para o comportamento desses jovens, considerando, de antemão, que eles precisam ter algo mais em comum do que o simples impulso da destruição para organizar suas ações aparentemente espontâneas, que, no entanto, revelam uma característica de sofisticada mobilidade e eficiência.
Pelo que se pode depreender das reportagens, a estratégia do governo de São Paulo é usar essas informações para tomar medidas práticas, como obrigar os reincidentes a se apresentar a uma autoridade policial no horário dos protestos. O modelo é semelhante àquele que é aplicado contra os integrantes de torcidas organizadas de futebol que se envolvem continuamente em conflitos nos estádios.
Mistura explosiva
Pressionado por uma campanha avassaladora que promoveu até mesmo o bloqueio da rua onde mora, o governador do Rio, Sergio Cabral, é movido pela urgência: se quiser sobreviver politicamente, ele não pode chegar ao fim do ano sitiado pelos manifestantes.
As palavras de ordem dos primeiros protestos eram contra o custo e a má qualidade dos transportes públicos, depois evoluíram para a exigência de investigação sobre o desaparecimento do pedreiro Amarildo Alves de Souza e atualmente têm como estopim as reivindicações salariais dos professores do Estado. No entanto, o alvo pessoal dos manifestantes segue sendo o governador Cabral.
A perspectiva de eleições no horizonte próximo instiga à urgência e limita a disposição das autoridades para entender a natureza desse fenômeno. Afinal, o que move centenas, eventualmente milhares, de jovens a arriscar sua integridade física e seu futuro por uma pauta de demandas difusa e quase irreconhecível?
Pesquisadores reconhecidos pela imprensa apresentam teses eventualmente conflitantes, mas no geral há certo consenso em que o conjunto denominado genericamente de “Black Bloc” tem como objetivo chamar a atenção para o distanciamento entre o Estado e o cidadão. Segundo essa tese predominante, baseada em entrevistas selecionadas no calor dos protestos, há um mosaico de racionalidade por trás das atitudes destrutivas desses manifestantes.
No entanto, seria aconselhável que os pesquisadores e jornalistas tivessem algum cuidado ao analisar declarações feitas aos gritos, no meio do tumulto, por jovens bombados pela adrenalina do momento.
Da mesma forma que ninguém vai considerar que o pacato pai de família que se manifesta nas arquibancadas contra o juiz de futebol acredite mesmo que a mãe do árbitro seja necessariamente uma prostituta, não se pode interpretar linearmente o que diz um manifestante enquanto se desvia de uma bomba de efeito moral e acende seu “coquetel molotov”.
Esse é talvez o maior desafio para se compreender o momento por que passam as maiores cidades do País: encontrar um terreno sólido no campo da racionalidade para entender o comportamento aparentemente irracional.
Há uma enorme dose de concessão nas análises de acadêmicos e jornalistas sobre a natureza dessa violência. A mistura de universitários, mendigos, meninos abandonados e delinquentes profissionais no confronto com policiais viciados na arbitrariedade compõe uma receita explosiva.
Quem poderia desejar um desfecho trágico para esse enredo?