Em um mundo onde milhões de pessoas vivem fora de seus países de origem, a música constitui um poderoso fator identitário, que ajuda a resgatar identidades perdidas ou a construir novas identidades. Isso é especialmente verdadeiro em relação àquela que poderia ser chamada de canção do exílio, da emigração, do nomadismo ou da diáspora.
Ao longo de décadas, por exemplo, o fado permitiu que milhares de emigrantes se reconhecessem como portugueses e que seus filhos e netos, nascidos fora de Portugal, recuperassem uma raiz havia muito secionada. Habitantes dos países que os acolheram, muitos sem nenhuma ascendência portuguesa, eventualmente se identificaram com esse gênero musical, elevado em 2011 à categoria de “Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade” pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Recém-publicado com o apoio da FAPESP, o livro Trago o fado nos sentidos é uma porta para ingressar no mundo dos admiradores e conhecedores dessa canção carregada de reminiscência e nostalgia.
Organizado por Heloísa de Araújo Duarte Valente, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de São Paulo (USP) e professora titular no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista (Unip), o livro reúne artigos de vários pesquisadores e é produto do intercâmbio internacional entre o Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e o Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (Inet-MD), Polo Universitário de Aveiro, em Portugal.
No prefácio do livro, Martha Tupinambá de Ulhôa, professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e membro do Conselho Superior da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), enfatiza a função identitária do fado.
“O fado foi o elo que permitiu a milhares de imigrantes portugueses no Brasil se verem como portugueses, e não agricultores ou pescadores de localidades isoladas e rurais. Em Portugal, a maioria dessas pessoas desconhecia o fado; só ao chegar ao Brasil e ter acesso aos programas de rádio dedicados ao gênero musical d’além-mar, redescobriu Portugal enquanto pátria a cantar e a sentir uma saudade nostálgica”, escreveu.
Nascido ou renascido nos bairros lisboetas de Mouraria e Alfama, então redutos de marginais e prostitutas, o fado foi, de início, estigmatizado pela intelectualidade conservadora, como lembra a pesquisadora Maria do Rosário Pestana, da Universidade de Aveiro, no capítulo de sua autoria (“O fado: destinos e oportunidades do ‘ser’ português”).
Para esse segmento da alta sociedade, que pretendia “regenerar” a nação portuguesa, o fado representava o exato oposto de seu ideal. Seu paradigma musical eram as canções folclóricas de origem rural, com sua celebração solar do trabalho ou da religião. Noturno, sentimental, melancólico, associado à “vida ociosa e desregrada”, o fado era bem o avesso disso.
A imprensa foi a trincheira dessa intelectualidade conservadora em sua batalha contra o fado. A emergência de novas mídias – o disco, o rádio e o cinema –, no entanto, fez mudar completamente o cenário. Seus protagonistas perceberam que o caráter anticonvencional, muitas vezes irônico e crítico, do fado estabelecia uma linha de comunicação direta com o público. E apostaram no gênero, que rapidamente se difundiu, no país e na emigração.
“A Severa”, o primeiro filme sonoro português, realizado por Leitão de Barros em 1931, a partir da novela homônima de Júlio Dantas, exaltou a figura da primeira fadista conhecida, a prostituta Maria Severa Onofriana (1820-1846), morta de tuberculose com apenas 26 anos.
Seu relacionamento amoroso com Dom Francisco de Paula Portugal e Castro, o Conde de Vimioso, tornou-se, em certa medida, uma reedição do famoso romance proibido de Dona Inês de Castro (morta em 1355) com o príncipe herdeiro do trono português, o futuro rei Dom Pedro I de Portugal – romance este celebrizado por Camões em Os Lusíadas. No coração do público, a jovem Severa revestiu-se de uma aura de santidade. E o fado, também sacralizado, pôde transitar das “tabernas suspeitas” para as “casas de família”.
“Dor da alma”
O auge do fado viria por meio de dois nomes principais: Alfredo Marceneiro (Alfredo Rodrigo Duarte, 1891-1982) e Amália Rodrigues (1920-1999), epígonos do fado castiço e do fado canção, respectivamente. Amália Rodrigues, alcunhada “a expressão máxima do fado” em turnê no Brasil, gravou seu primeiro disco, em 1945.
A saga que daí decorre está bem entrelaçada com a história da própria imigração portuguesa no Brasil, lembrou Heloísa de Araújo Duarte Valente à Agência FAPESP. Pois foi também no Rio de Janeiro que o compositor português Frederico Valério (1913-1982) compôs, para Amália, um dos mais famosos fados de todos os tempos: “Ai Mouraria”.
“Os imigrantes portugueses vieram predominantemente do norte, das áreas rurais e menos desenvolvidas de Portugal. Gostavam mesmo era das músicas simples de aldeia, das cantigas, dos ‘viras’. Mas, aqui, incorporaram o fado como fator identitário, pois ele havia se tornado sinônimo de ‘música portuguesa’”, disse Valente.
“Há, em muitos portugueses residentes no Brasil, uma carência emotiva, muitas vezes decorrente do distanciamento da terra natal, cujas raízes são certamente bastante profundas. Daí a necessidade de lembrar da origem, da aldeia deixada do outro lado do Atlântico. E até mesmo de adotar o gênero lisboeta, com o mesmo valor afetivo dado às músicas típicas do seu lugar de origem”, prosseguiu.
A pesquisadora concorda que o fato de o fado ter ocupado tal espaço no imaginário do imigrante se deve, por um lado, a uma causa puramente circunstancial: ele era, então, o gênero musical em evidência. Se fosse outro o gênero, este teria cumprido igualmente o papel, pois era necessário um elemento cultural aglutinador, nivelador.
Mas há também outra causa, muito mais profunda, que é a própria natureza predominantemente sentimental, melancólica e nostálgica do fado. Essa “dor da alma” vem a calhar com o sentimento da pessoa que está fora de seu contexto de origem. Não que todos os fados sejam tristes. Existem também os alegres. Mas poucos gêneros souberam cantar tão bem a saudade.
A historiadora Heloisa Helena de Jesus Paulo, da Universidade de Coimbra, escreveu que “Portugal é um dos maiores exportadores de gente”. E o geógrafo Jorge Carvalho Arroteia, da Universidade de Aveiro, computou o montante dessa “exportação”: mais de 2 milhões de pessoas, entre 1900 e 1975, ano em que as então colônias africanas se emanciparam do domínio português. Essa cifra corresponderia, hoje, a 20% da população total de Portugal. Se fossem somadas as parcelas correspondentes aos séculos anteriores, o número da diáspora portuguesa mais do que dobraria.
Grande parte da emigração concentrou-se no Brasil. Mas comunidades portuguesas numericamente expressivas também se constituíram nos Estados Unidos, na Venezuela, no Canadá, na África do Sul e, mais recentemente, na França, na Suíça e na Alemanha.
Ante o impacto da separação e da partida, a música desempenha papel da maior importância na construção ou reconstrução dos indivíduos e da sociedade, enfatiza Maria do Rosário Pestana no livro. “Constata-se ainda que opera mecanismos substitutivos de vivências reais. Pela música podem ser atualizadas memórias, bem como sentimentos de pertença e vinculação, mesmo naqueles cujo trajeto e linhagem não contêm essas memórias específicas. De fato, luso-descendentes e cidadãos não portugueses podem viver pela música imaginários de portugalidade”, escreveu a pesquisadora de Aveiro.
Trânsito transatlântico
Os tempos da história do fado em Portugal e na emigração nem sempre coincidiram, porém. E essas assincronias acabaram impulsionando o trânsito de fadistas de um lado para outro do Atlântico.
“Na década de 1960, o fado tornou-se malvisto nos segmentos mais progressistas da sociedade portuguesa, porque foi associado ao regime de Salazar. E, a partir da Revolução dos Cravos, em 1975, ele quase desapareceu, ficando restrito a poucos redutos”, informou Valente.
A despeito de sua origem marginal, creditada às pessoas de “má vida”, a fama adquirida pelo fado fez com que ele fosse, em certa medida, cooptado e instrumentalizado pela ditadura salazarista, o que lhe deu uma pecha de reacionarismo.
E isso apesar de Amália Rodrigues ter tido seu fado “Abandono” censurado, por ser considerado um hino de louvor aos que se encontravam encarcerados em Peniche, a mais terrível prisão política de Portugal. “Muitos artistas portugueses nessa época tiveram que vir para o Brasil, porque não tinham como continuar trabalhando em Portugal”, afirmou a pesquisadora.
Para além da conjuntura política, as relações transatlânticas envolveram também outras tensões, decorrentes de gostos e preferências e, acima de tudo, de uma espécie de ciúme bairrista. “Em nossa pesquisa, descobrimos que os fadistas que vieram de Portugal e desenvolveram carreira aqui foram, de certa maneira, malvistos em Portugal. Como se, tendo saído de lá, sua música já não pudesse ter a mesma pureza”, relatou Valente.
“Meu contato deu-se principalmente com Adélia Pedrosa, que, além de grande intérprete, foi também sócia-proprietária de restaurantes típicos que marcaram época. Ela dizia sentir-se muito afetada por essa discriminação. Até fiz uma comparação com os vinhos: o fado que emigrou já não era mais considerado ‘música de terroir’”.
Malvisto ou bem-visto, o fado da emigração assegurou a sobrevivência do gênero. Mas, pela década de 1990, ocorreu um fenômeno curioso. “Jovens, que haviam nascido nos anos 1970 e pouco ou nada sabiam do fado, entraram, muitas vezes de forma casual, em contato com ele”, informou Valente.
“Foi o que ocorreu, por exemplo, com Cristina Branco, nascida em 1972, e uma das protagonistas daquela que poderia ser chamada de ‘revivescência do fado’. Ela conta que, ao fazer 18 anos, ganhou do avô o disco “Rara e Inédita”, de Amália Rodrigues. Escutou, apaixonou-se e largou o curso de Comunicação para virar fadista. As gravadoras foram sensíveis a esse fenômeno, percebendo que, nele, se afigurava um novo nicho de mercado.”
Essa revivescência, que começou em Portugal, rapidamente se alastrou pelo mundo. Uma representante típica do momento foi a cantora Mísia, que musicou textos de Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís e outros nomes da alta literatura. Mas, apesar do sucesso no exterior, principalmente na França, seu trabalho, sofisticado demais, não foi tão bem aceito pelas pessoas comuns.
Processo semelhante viria a se repetir na geração posterior, desta vez protagonizado por descendentes de portugueses radicados no estrangeiro. Foi o caso de Cindy Peixoto, entrevistada por Maria do Rosário Pestana. Nascida em Estrasburgo, na França, aprendeu fado nos discos e hoje os canta e compõe, em português e francês. Sem raízes no gênero, fez uma imersão nos bairros de Mouraria e Alfama, em Lisboa, para reencontrar o fio da tradição.
Neste ponto, porém, voltam a pesar as diferenças de tempo e temperamento. As novidades, que fazem sucesso na Europa, são praticamente ignoradas no Brasil. Até mesmo celebridades da nova geração portuguesa, como as cantoras Mariza e Ana Moura, continuam pouco conhecidas aqui. “Os portugueses do Brasil gostam mais daqueles fadistas já consolidados e que frequentemente visitam o Brasil, como Carlos do Carmo”, comenta Valente.
Um tema caro à pesquisadora é justamente esse movimento cíclico de sucesso, esquecimento e recuperação – o processo de “nomadismo”, como ela o chama – pelo qual passa o fado em sua interação com as mídias. O interesse, que suscitou no triênio 2006-2009 a pesquisa “A canção das mídias: memória e nomadismo”, apoiada pela FAPESP, é também um dos tributários de Trago o fado nos sentidos.
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José Tadeu Arantes é repórter da Agência Fapesp