Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma questão de gênero?

Em um ensaio de 1939 sobre a arte da biografia (The Art of Biography), Viginia Woolf traça um retrato da biografia tradicional, que dominou a cena literária pelo menos até inícios do século 20:

“A viúva e os amigos eram exigentes. Suponhamos, por exemplo, que o homem de gênio era imoral, tinha mau caráter e atirava com as botas à cara da criada. A viúva dizia: ‘Apesar de tudo eu o amava – era o pai dos meus filhos; e o público, que gosta dos seus livros, não deve em caso algum ser desiludido. Esconda, omita.’ O biógrafo obedecia. É assim que a maioria das biografias vitorianas são, como as figuras de cera preservadas na Abadia de Westminster, que era costume transportar pelas ruas quando havia funerais – efígies que não têm senão uma semelhança superficial com o corpo que repousa no caixão.”

O ponto de virada nesse panorama acontece em 1918, com a publicação do livro Eminent Victorians, de autoria de Lytton Strachey, com as biografias de quatro figurões da era vitoriana: o cardeal Manning, a enfermeira Florence Nightingale, o dr. Thomas Arnold e o general Gordon. A obra inicia a fase das chamadas biografias demolidoras, que mostram “o outro lado” de figura veneráveis. Como qualquer ser humano, os heróis e heroínas também tinham sido, afinal, tacanhos, estreitos, egoístas, teimosos.

No entanto, ainda que se aceite o princípio de que – em prol da liberdade de expressão e da fidelidade histórica – o lado negativo de figuras públicas possa vir a público, isso evidentemente não esgota a questão, mas apenas a estabelece: como definir o que é a fato e o que é ficção, quando nos deparamos com uma biografia? Ainda que o fato relatado seja verídico, sua forma de narração condiz com a realidade histórica do biografado?

Uma polaridade extrema

Existe uma vasta bibliografia acadêmica em torno da construção de biografias e sua relação com a ficção e uma instrutiva síntese sobre a polêmica está em artigo intitulado “Biografia & Ficção“, de autoria da pesquisadora portuguesa Maria Antónia de Oliveira, ela própria autora de uma biografia do poeta surrealista português Alexandre O’Neill, (Alexandre O´Neill: Uma Biografia Literária, Dom Quixote, 2007).

Comenta Maria Antónia de Oliveira:

“A verdade dos factos e a verdade da ficção são incompatíveis. No entanto, [o biógrafo] é agora mais do que nunca instado a combiná-las. De facto, parece ser a vida ficcional aquela que cada vez mais é para nós a vida mais real; ela concentra-se na personalidade, mais do que na acção. Cada um de nós é mais Hamlet, príncipe da Dinamarca, do que é John Smith, comerciante. Assim, a imaginação do biógrafo está sempre a ser estimulada a utilizar a arte do romancista para arranjar, sugerir e produzir efeitos dramáticos na exposição da vida privada. Mas se leva demasiado longe o uso da ficção, até ao ponto de desrespeitar a verdade, ou de a apresentar de forma incongruente, perde os dois universos: deixa de possuir tanto a liberdade da ficção como a substância dos factos.”

Em termos de gêneros literários, uma polaridade extrema pode estabelecer pontos de referência para situar as áreas cinzentas em que se move a polêmica em curso neste momento no Brasil: em um polo produzem-se biografias fortemente ancoradas em documentação, entrevistas, gravações, textos do biografado, material iconográfico, levando o produto final para o âmbito das obras acadêmicas (como por exemplo, Clarice, de Benjamin Moser, de 2009); no outro situam-se os romances históricos, que apenas usam personagens reais e baseiam-se, de forma mais ou menos vaga, em fatos históricos (como por exemplo, As Maluquices do Imperador, de Paulo Setubal, de 1927).

Hagiografias no lugar de biografias

O problema é que – mesmo em se atendo a fatos – o biógrafo vê-se quase sempre tentado a trazer o mais possível o biografado para a proximidade do leitor, desvelando sua intimidade. Novamente recorremos à voz de Maria Antónia de Oliveira:

“Chegar à subjectividade do biografado e poder mostrá-la textualmente é uma grande tentação para qualquer biógrafo, causa de certo procedimento que desliza perigosamente para o terreno da ficção: numa tentativa de melhor simular vida, o biógrafo exprime pensamentos do biografado e inventa diálogos que poderiam ter acontecido. Nestes casos, o perigo não está tanto na invenção, mas na indiferenciação entre o inventado e o acontecido. As conjecturas, em biografia, devem ser cuidadosamente apresentadas ao leitor como tal (…)”

A biografia, debatendo-se com a antítese factualidade x ficção, deveria deixar claro a cada momento o que está sendo ficcionalmente reconstruído (as situações do tipo poderia ter acontecido desta forma) e o que é fato documentalmente registrado (as situações do tipo aconteceu mesmo desta forma).

Separar cabalmente fato e ficção no gênero biográfico, inclusive nos modos de narrar, parece-me uma quimera. Mesmo quando o biógrafo foi contemporâneo e privou da intimidade do biografado, testemunhou feitos e falas, é necessário lembrar que a memória é sempre um ato de re(criação). Querer uma separação estrita entre relato factual e ficção, no caso do gênero biográfico, implicaria fazê-lo retroceder a modelos vitorianos, optando-se, portanto, por hagiografias no lugar de biografias.

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Marcos Palacios é professor titular da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia